terça-feira, 29 de março de 2011

“Admitir que o tribunal condena a administração seria claramente uma violação do princípio da separação de poderes.”

O presente comentário não começará com uma síntese ideológica sobre o princípio da separação de poderes que poderia começar com Aristóteles (“Politica”), passar por John Lock (“ two treatises of governmente”) e por Montesquieu, entre muitos outros. Também não nos debruçaremos sobre a sua evolução histórica no direito português. No comentário desta frase pretendemos tão só fazer umas breves reflexões à luz do actual Direito. 
            Desde logo nos surge o problema de saber o que se entende por separação de poderes.
Vendo o Estado em si mesmo como um poder único, o princípio da separação de poderes deve impor a esse mesmo Estado o respeito pelos direitos fundamentais dos seus cidadãos. E é ao Estado que cabe assegurar essa liberdade. De acordo com o artigo 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, “ qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição. Ultrapassando o ideário liberal em que se vislumbrava uma separação de poderes rígida (e aqui já estaremos a pecar por introduzir elementos históricos), esta deve ser vista de uma forma mais harmónica, assegurando uma vivencia mais equilibrada entre os vários poderes (a saber: legislativo, administrativo e jurisdicional).
            Seguindo Gomes Canotilho diremos que é confiado a cada órgão soberano uma função materialmente distinta, sendo que, não pode a nenhum desses órgãos, sob pena de violação do principio da separação de poderes, ser atribuída função que implique esvaziamento do núcleo essencial material do outro.
            Interessa-nos agora distinguir as duas funções que aqui estão em causa: função administrativa e função jurisdicional. Para Jorge Miranda, enquanto a primeira prossegue o interesse público correspondente às necessidades colectivas prescritas em lei, a segunda define o direito em concreto.
            No confronto entre ambas as funções, cujo princípio lhes é aplicável (art. 3º e 71º CPTA), a função jurisdicional deve ser expressão da legalidade democrática, deve a essa luz resolver os problemas entre interesse público e privado e tem a importante função de defender os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. No fundo os tribunais podem “imiscuir-se” na função administrativa quando esteja em causa a legalidade democrática, sem que isso viole o princípio da separação de poderes.
            Mas então e o “espaço de liberdade de actuação administrativa conferida por lei e limitada pelo bloco de legalidade” (definição de margem de livre decisão segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos)? De facto os tribunais não podem fiscalizar o mérito da acção administrativa: a isto se chama reserva de administração (art. 71º/2 CPTA). Contudo a margem de livre decisão não é imune a “agressões” da função jurisdicional. Isto porque também esta sujeita a limitações. Primeiramente surgem a limitações legais a que está sujeita a administração. Outro limite é a redução a zero da margem de livre apreciação, que apenas faz surgir uma decisão juridicamente admissível., por fim temos os limites imanentes, estando aqui a força jurídica dos princípios de actuação administrativa (art. 266º CRP e art. 71º CPTA).
            Concluímos no sentido de que os tribunais são competentes para garantir a legalidade das decisões administrativas. Não podem, contudo, violar a reserva de administração, fazendo o seu papel. Mas a separação não é absoluta e a própria margem de livre apreciação está também ela sujeita a limites.

Pedro Nascimento  nº17817

segunda-feira, 28 de março de 2011

Os Limites à Plena Jurisdição dos Tribunais Administrativos

A Reforma Administrativa de 2004 altera substancialmente o modelo legal num sentido subjectivista, embora com alguns resquícios de um modelo objectivista.

O modelo objectivista, ou de tipo francês, consiste num contencioso com uma função virada para a defesa da legalidade e do interesse público, pelo que os tribunais limitam-se apenas a declarar a invalidade dos actos praticados – Contencioso de Mera Anulação. Esta visão limitada da actuação jurisdicional deve-se a uma interpretação muito restritiva do Princípio da Separação de Poderes, onde se considerava que “Julgar a Administração é ainda administrar”, pelo que o tribunal não poderia condenar a administração a praticar determinado acto com certo conteúdo pois estaria a usurpar o seu poder. Uma sentença de condenação à prática de certo acto não só era vista como uma usurpação de poderes, mas também como uma perversão da hierarquia administrativa, pois seria um órgão administrativo (Tribunal Administrativo) a dar ordens, através da sentença, ao seu superior hierárquico, o Ministro.

O modelo subjectivista, ou de tipo alemão, consagra o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, em que os tribunais têm amplos poderes decisórios sobre a Administração. Este modelo altera substancialmente a visão pervertida do princípio da separação de poderes, interpretando este princípio como um princípio de equilíbrio, que não exclui a colaboração e interdependência entre os poderes, mas sim promove-a, garantindo uma melhor fiscalização dos poderes.

A evolução do modelo objectivista para o subjectivista veio consagrar então a plena jurisdição dos tribunais administrativos, plasmado no art.º2/1 do CPTA. O artigo chega mesmo a elencar os diversos conteúdos das pretensões possíveis para marcar a diferença em relação ao regime anterior onde só eram permitidas sentenças de anulação.

Apesar de se falar em tutela jurisdicional efectiva, o que parece abranger todo e qualquer tipo de resolução de controvérsias emergentes da relações jurídicas administrativas, esta tutela apenas abrange “questões de direito”. A função jurisdicional administrativa está então funcionalmente limitada aos litígios que levantem questões jurídicas. CASTANHEIRA NEVES caracteriza a função jurisdicional como a procura dos “fundamentos” do “valor”, do “justo”; enquanto que a função administrativa procura a melhor solução, o melhor efeito ou sentido útil, são as chamadas questões de mérito.

A actividade jurisdicional dos Tribunais Administrativos está condicionada pelas limitações funcionais decorrentes do seu exercício, que envolve um juízo sobre a legitimidade de exercício de um outro poder público – Poder Executivo. O Princípio da Separação de Poderes implica, naturalmente, algumas limitações ao poder jurisdicional, de modo a evitar que este se substitua à Administração, e era exactamente por isso que, tradicionalmente, se afirmava que a jurisdição administrativa era, por natureza, uma jurisdição limitada.

Resta saber se, face ao novo regime de plena jurisdição da justiça administrativa, é ainda possível ver alguma fragilidade dos tribunais perante o poder administrativo, sendo essa a questão central que pretendo tratar.

A eficácia da protecção jurisdicional administrativa está limitada pela distinção funcional entre decidir e fiscalizar, pois enquanto esta última consiste apenas em controlar uma competência alheia, a primeira implica uma valoração mais ou menos livre, consoante a indeterminação conceitual da norma a aplicar.

A função de decidir implica um maior conhecimento da situação em causa, uma ponderação entre as alternativas e a escolha da melhor opção, da opção que melhor atinja o sentido útil da norma. A função de fiscalizar, feita por um 2º interprete, implica a análise da situação em abstracto, submetendo a decisão a testes de jurisdicidade, podendo condenar a Administração à prática de novo acto apenas quando o primeiro incumpra princípios reguladores da decisão, e mesmo neste caso, pode apenas aconselhar e indicar as opções que respeitem os princípios jurídicos, cabendo a escolha da melhor opção à Administração, sendo a única excepção as situações em que haja apenas uma escolha que respeite os princípios.

Esta limitação da sentença, na abstenção por parte do Juiz em decidir qual o conteúdo do acto a praticar, é outro limite funcional – o autocontrolo do juiz perante a reserva de discricionaridade na Administração.

O Tribunal Administrativo está então limitado apenas a fiscalizar o cumprimento de normas e princípios jurídicos vinculativos da Administração e não a conveniência ou oportunidade do acto, como consagra o art.º3 do CPTA.
Antigamente também existiam limites funcionais da justiça administrativa e dos poderes de decisão do juiz, pois este só podia anular o acto, não podendo, como agora, exercer plenamente o seu poder de jurisdição através de condenações ou injunções contra a Administração. Estes limites funcionais – mera anulação do acto – foram totalmente ultrapassados com a Reforma de 2004. 

A Reforma de 2004 eliminou os limites ao poder de jurisdição administrativo, através do princípio da tutela jurisdicional efectiva, no entanto, ainda que o nome do princípio o pareça indicar, esta tutela não é absoluta, continua a estar limitada.

Actualmente o juiz pode decidir todos os pedidos enumerados no art.2º do CPTA e não apenas anular, mas “o que o juiz não pode é determinar aquilo que a Administração há-de fazer num caso concreto, e muito menos substituir-se a ela, quando esteja em causa o conteúdo “discricionário” de um acto de autoridade, devendo limitar-se, então, a uma condenação genérica ou directiva[1].

Em suma, o Princípio da Separação de Poderes já não implica uma proibição absoluta de impor comportamentos à Administração, mas apenas uma proibição funcional de um juiz interferir na essência do sistema de administração executiva. 

Catarina Ruivo Rosa, nº 17221


[1] VIEIRA DE ANDRADE, Justiça Administrativa, Almedina, 2007

sábado, 26 de março de 2011

Do Acto Administrativo liberal e d' A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp

 (A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp - Rembrandt)
     1789, França. Por entre o fogo e o ferro nas mãos da turba, um velho mundo é sepultado, e um novo nasce. Parte desse novo mundo é uma organização da polis como nunca antes havia sido vista, a qual assentava na estrita separação de poderes, como Montesquieu definiu em L'Esprit des Lois, obra base dos maestros da ordem pós revolucionária francesa. A essa nova ordem chamou-se Estado Liberal.
     
     Cabe neste post, caracterizar a relação entre Acto Administrativo e Estado Liberal, e de como um e outro formam uma relação simbiótica quase inabalável.
   
     À época do Estado Liberal, deparava-mo-nos com uma Administração cuja a orientação era grandemente de oposição ao particular, contendo esta um verdadeiro cariz agressivo,não tendo qualquer vocação prestadora (figura para a qual no futuro a Administração evoluirá), mas sim a de assegurar ao particular a sua liberdade de actuação política e económica, no estrito cumprimento da já referida separação de poderes, separação esta enquadrada pelo Princípio da Legalidade, Princípio o qual consubstancia apenas o limite máximo de actuação da Administração, deixando uma larga margem de liberdade de modo a que se encontrasse capacitada para atingir o seu fim último, o de administrar a res publica, se necessário em frontal confronto com a vontade privada (a qual devia, como nos dias de hoje, ceder ao verdadeiro interesse público). Desta feita, a Administração socorre-se da figura 'Acto Administrativo', o qual tinha por magna função, exprimir a oposição da Administração face ao particular.
     
   Aqui chegados, dissequemos o Acto Administrativo desta época. O Acto Administrativo é um conceito semeado e cultivado pela jurisprudência administrativa, com o fim de delimitar a zona de acção da Administração. Com a evolução do Direito Administrativo veio a tornar-se a pedra de toque de todo um edifício jurídico-administrativo, habilmente esculpido pela doutrina, a qual o lima e configura naquilo que mais tarde conheceremos. De acordo com o Professor Freitas do Amaral, ainda em 1989, bem antes da revolucionária reforma de 2003, a principal função do Acto era a de enquadrar a actuação da Administração, de modo a proteger e salvaguardar o cidadão. Seria então o Acto uma eficaz protecção Constitucionalmente consagrada contra o eventual poder público abusivo e arbitrário.
     
   Cabe então, como vimos, à doutrina dos fins do século XIX, inícios do século XX, teorizá-lo e torná-lo o centro do funcionamento do Estado de Direito. Esta lapidação magistralmente executada corresponderá ao que hoje chamamos teoria clássica do Estado de Direito, a qual cristalizava o Acto Administrativo como o fim em si mesmo da elaboração teórica do Direito Administrativo. Assim, bem se vê, sofre o  Acto Administrativo do estigma de o quererem tornar o umbigo da ciência administrativa, sem que para tal ele se encontrasse capacitado, dada a vastidão do que é a realidade administrativa - um verdadeiro caso de complexo de superioridade, como certamente atestaria Alfred Adler!

     Das mais exemplificativas imagens do acima exposto são as construções dogmáticas protagonizadas por Hauriou e Mayer, ambas de natureza autoritária. Para Maurice Hauriou o Acto Administrativo seria amplamente entendido, tornando-se uma realidade paralela ao negócio jurídico, sendo, no entanto, o acto executorio a máxima manifestaçao do poder administrativo alicerçado no imperium do Estado. Diversamente de Hauriou, Otto Mayer aproxima o Acto Administrativo da sentença judicial, dado que ambas as realidades encerram em si um comando imperativo dirigido ao particular, o qual, independentemente da sua vontade, terá de o acatar. Assim, tanto a sentença como o acto encontram na coercibilidade estadual (ainda que não violenta) a sua legitimidade final.

     Como foi então descrito, o Acto Administrativo é um produto de uma forma de teorizar todo um ramo de Direito numa determinada época - a do Estado Liberal -, pelo que se adequa perfeitamente à necessidade sentida, que era a de ter um Direito racional, desenhado a régua e esquadro, bem revelador do fosso que separava o Leviatã estadual do pequeno cidadão privado.

     Como tudo, o próprio Estado evoluiu, neste caso em direcção ao estado social, mas no entanto, a teorização do Acto Administrativo manteve-se relativamente inalterada, como se de uma bactéria multirresistente se tratasse. O acto, de natureza agressivo sobreviveu e, prosperou até, como prova a realidade vivida em Portugal durante os anos do Estado Novo (referência seja feita a Marcello Caetano que através dos seus trabalhos corporizou no Código Administrativo de 1936-40 e nas normas reguladores do Supremo Tribunal Administrativo, os ensinamentos e doutrina de Hauriou e Mayer). Mas se no contexto de um Estado autoritário não choca tal visão musculada do Acto Administrativo, já esta mesma visão choca frontalmente com os mais singelos imperativos de lógica presentes em qualquer estudioso de Dirieto Amdinistrativo, que se vê impossibilitado de compreender qual a razão que leva Estados, com uma larga e  fundadora tradição democrática da sociedade e até antropocêntrica do Direito, a ainda hoje consagrarem esta orientação doutrinária. É, porém, essa uma discussão a qual prefiro guardar para um futuro post, dado que só por si é uma matéria de grande interesse e elevada densidade dogmática.

Carlos Miguel Vaz Serra
nº15811
Subturma 8

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Julgar a administração é ainda administrar"

A profunda alteração social, política e económica que a Revolução Francesa gerou teve resultados imediatos na ordem jurídica. Baseada numa concepção de separação de poderes, esta Revolução pode ser considerada como marco do início da história do contencioso administrativo.
A separação de poderes postula a divisão dos poderes legislativo, executivo e judicial, sendo estas funções atribuídas a diferentes órgãos. Contudo, o entendimento francês deste princípio levou a admitir que os conflitos em que a Administração era parte deveriam ser julgados pela própria Administração, de modo a evitar uma subordinação do poder executivo ao judicial. Afirmou-se, então, que “julgar a administração é ainda administrar”.
Este era o modelo do administrador-juiz, em que a decisão final dos litígios administrativos cabia aos órgãos superiores da Administração. Era o modelo do Estado liberal em que a Administração era considerada agressiva pois intervinha pouco e contra o particular.
Neste modelo organizativo do contencioso, havia uma confusão ou concentração de dois poderes num decisor que julgava e administrava. É de realçar que este entendimento surge numa fase de revolução em que os tribunais desempenharam um importante papel na luta contra o poder do rei, levando os revolucionários, agora no poder, a temer essa força dos tribunais. Foi no intuito de garantir que os tribunais não interferiam no poder administrativo que lhes foi retirado o poder de julgar a Administração.
Pode dizer-se que este modelo de administrador-juiz durou entre 1789 e 1799.
Em 1799 foi criado o Conselho de Estado. Tratava-se de um órgão administrativo que emitia pareceres sujeitos a homologação do chefe de Estado. Esta fase durou até 1872 e foi denominada de justiça reservada.
A partir desta data a justiça deixou de ser reservada e passou a ser delegada. Diz-se delegada pois o Conselho de Estado, que continua a ser um órgão administrativo, actua agora com base numa delegação de poderes. No entanto, manteve-se a ideia de que julgar a administração é ainda administrar.
Com a evolução para o Estado Social perde-se o entendimento de que a Administração é puramente executiva, atribuindo-lhe como principal característica o poder discricionário. A lei é agora o limite e o fundamento da actuação administrativa pelo que os tribunais podem controlar a legalidade mas não o mérito das decisões da administração.
Embora em França continue a haver um modelo de justiça delegada, actualmente já não vigora o modelo de administrador-juiz, vigora sim um modelo judicialista que se caracteriza por atribuir aos tribunais, integrados numa ordem judicial, a decisão dos litígios administrativos. O princípio agora já não é o de que “julgar a administração é ainda administrar” mas sim o de que “julgar a administração é verdadeiramente julgar”. Entende-se que a actuação da Administração está subordinada à lei e que os tribunais são competentes para conhecer os litígios emergentes de relações administrativas.
Conclui-se pelo acima exposto que o entendimento de que “julgar a administração é ainda administrar” fez sentido no pós Revolução Francesa mas com a evolução da história do contencioso administrativo tornou-se clara a sua jurisdicionalização e a separação entre julgar e administrar.

Ana Rita Peres n.º 16109

A Legitimidade.

Os preceitos processuais específicos do Contencioso Administrativo e também comuns a todos os meios processuais como é o caso da legitimidade, entre outros, constam Código de Processo dos Tribunais Administrativos, ou doravante designado CPTA. É de destacar aqui a legitimidade visto ser a matéria que em questão nos interessa estando, assim, prevista nos arts. 9º e seguintes do já referido CPTA.

Quanto a estes preceitos respeitantes aos pressupostos parece pouco coerente a lei (ou o legislador mais concretamente) não ter diferenciado efectivamente o que era comum e o que era especial o que leva à existência de uma repetição do que já tinha sido previsto nos termos gerais, uma tal situação pode levar a uma confusão, pode causar problemas ao intérprete e aplicador do Direito, no que respeita a saber, o que está a ser repetido ou o que é realmente novo, dando origem a um regime especial.

Deixando de parte problemas mais abrangentes, como o acima referido, foquemo-nos agora na questão da legitimidade, sendo que esta é a ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, a ligação entre o problema efectivo entre a Administração e a outra parte a ser resolvido nos tribunais, podendo ser suscitado por quem de direito, ou seja, a legitimidade destina-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais.

Como já foi referida a repetição existente no CPTA, além das disposições gerais, existe ainda uma Subsecção II (Da Legitimidade) a propósito da acção administrativa especial qualificada em razão do pedido da impugnação, onde se estabelece um regime "especial" (o que não difere muito da parte "geral", criando-se assim a repetição). Nesta subsecção encontram-se regras relativas à legitimidade, existindo assim uma separação entre legitimidade activa (art. 55º CPTA) e legitimidade passica, que nesta subsecção aparece como "contra-interessados" (art. 57º CPTA). Ainda nesta parte do Código aparece a "aceitação do acto" que, em rigor, não é uma questão de legitimidade, o que será discutido mais adiante.

No art. 55º CPTA é feito, em diversas alíneas, a enumeração das categorias de actores processuais que serão agora examinadas.
Em primeiro lugar, temos os sujeitos privados, em causa está o exercício do direito de acção por privados,, que actuam para a defesa de interesses próprios e podem ser:


A) Os indivíduos que tenham interesse "directo e pessoal" na demanda por terem sido lesados pelo actos nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Os individuos devem alegar a titularidade de um direito subjectivo (art. 9º CPTA), sendo esta uma noção ampla de direito subjectivo público, pois este conceito integra, não só o direito subjectivo (em sentido estrito), mas também os interesses legítimos e osinteresses difusos (visão tripartida).

B) As pessoas colectivas privadas (art. 55º/2 b) CPTA), estas são entidades ficcionadas para efeitos juridicos mas dotadas de direitos e deveres tal como os individuos acima referidos. Contudo, apesar desta assimilação aos indivíduos, as pessoas colectivas são uma realidade instrumental para a realização de interesses das pessoas humanas estando, deste modo, submetidas ao principio da especialidade, isto é, apenas "gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres compatíveis com a sua natureza", art. 12º2 CRP.


Em segundo lugar, temos as pessoas colectivas públicas (art. 55º/2 b) e e) CPTA). Quanto a estas, os sujeitos públicos tanto podem ser as pessoas colectivas públicas, como os órgãos administrativos (ou seja, há as relações jurídicas interpessoais e interorgânicas).


Depois destas, há que enumerar o actor popular, isto é, a legitimidade através da acção popular, que por sua vez tem duas engloba duas modalidades (que geram certos problemas/ questões, que serão referidas):


A) Acção Popular Genérica (art. 55º/1 f) CPTA que remete para o art. 9º/2 do mm Código): esta engloba particulares e pessoas colectivas actuando, de forma objectiva, para a defesa da legalidade e do interesse público, não sendo necessário que estes tenham interesse directo na demanda.


B) A Acção Popular de Âmbito Autárquico (art. 55º/2 CPTA): segundo esta qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, pode impugnar as deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontrem recenseados. Esta é também conhecida como acção popular "correctiva".


É aqui que surge um dos problemas ou questões importantes, é assim, necessário saber se esta dualidade de acções populares (genérica e de âmbito autárquico) se justifica, ou se, pelo contrário, a acção genérica seria suficiente uma vez que o seu âmbito mais abragente abrangeria também as questões autárquicas.
De acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, tal como descreve no seu manual "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", a acção correctiva caduca perante a acção popular genérica, uma vez que esta última tem requisitos de admissibilidade mais amplos que absorvem os anteriores, ou seja, quando se refere aos sujeitos como "qualquer pessoa", está a abranger necessariamente "qualquer eleitor"; quando se refere a bens (bens e valores constitucionalmente protegidos), abrange, desta forma, os bens e valores autárquicos; por fim, quando se refere ao âmbito de aplicação, a acção popular genérica abrange toda e qualquer decisão administrativa e por isso, também, as dos órgãos autárquicos.


Finalmente, quanto aos actores processuais, há ainda que referir o Ministério Público que é também ele titular de acção pública no Contencioso Administrativo, actuando a título institucional, para a defesa da legalidade e do interesse público.


Estando, então, enumerados os actores processuais activos anunciados do CPTA, cumpre agora dar atenção a outras problematicas. No que diz respeito ao art.57º CPTA ("contra-interessados" ou actores passivos), este qualifica como sujeitos processuais os particulares dotados de "legítimo interesse" na manutenção do acto administrativo, ou dito de outra forma, que são "directamente prejudicados" pelo provimento do pedido de impugnação. Estes particulares são verdadeiros sujeitos de relações juridicas administrativas multilaterais, as quais, para além da Administração e dos destinatários imediatos da actuação administrativa em causa, dão origem a uma "rede" de ligações juridicas entre multiplos sujeitos, uns do lado activo, outros do lado passivo, que são titulares de posições de vantagem juridicamente protegidas, pelo que devem gozar dos corresp0ndentes poderes processuais.
Ao considerar que, nos processos de impugnação, os sujeitos das relações multilaterais, com interesses coincidentes com os da autoridade autora do acto administrativo, são obrigatoriamente chamados a intervir no processo, o CPTA está a abrir o Contencioso Administrativo à protecção desses direitos "impropriamente chamados de terceiros". Estes "terceiros" têm assim, através do Código uma posição de segundo plano, ou seja, a expressão "contra-interessados" e o seu papel não definido de modo rigoroso pelo CPTA está a secundarizar o lado passivo.
Este novo paradigma das relações administrativas multilaterais do Direito substantivo Administrativo deveria implicar uma revalorização destes sujeitos passivos, devendo a sua designação de "terceiros" ser alterada, passando a sujeitos principais dotados de legitimidade, uma vez que o Código assim o obriga e também porque na prática estes sujeitos não são meros terceiros. Ainda de reparar que nas regras gerais estes sujeitos não recebem tratamento, não recebem qualquer atenção, nem a eles se faz referência.

Problema ainda a ter em atenção é o que diz respeito à aceitação do acto administrativo que aparece na Subsecção II ao lado das regras da legitimidade, quando, em rigor, este pressuposto nada está relacionado com a legitimidade (art. 56º CPTA). A questão que aqui se coloca não é actual, mas vem já desde o inicio, desde a formação do Contencioso Administrativo, sendo portanto, um problema antigo e não, propriamente, moderno e actual. Tradicionalmente, a aceitação do acto era considerada uma questão de legitimidade e não de interesse em agir, pois era negado aos particulares a titularidade de direitos subjectivos perante a Administração (como aliás já foi tratado a proposito da tarefa 1 proposta pelo professor) e qualificava-se a legitimidade processual em termos de "interesse directo, pessoal e legítimo" tomando-se esse interesse como condição necessária para a existência de legitimidade, que funcionava como sucedâneo das posições subjectivas cuja existência, como já se disse, não se admitia, a consequência de tudo isto era a não consideração do interesse em agir como pressuposto processual autónomo. 
Portanto, o legislador, nesta altura em que são reconhecidos direitos e interesses legalmente protegidos aos particulares, de forma plena, deveria rever a aceitação do acto na organização e estrutura do CPTA. Como tal ainda não foi feito, o problema subsiste, ou pelo menos teoricamente, deste modo, um de dois caminhos há que percorrer, ou se considera que a aceitação do acto contitui um pressuposto processual autónomo, o que significa solução diferente do seu reconhecimento como legitimidade ou interesse em agir (como refere Vieira de Andrade) ou, por outro lado, se reconduz tal aceitação à falta de interesse processual. O professor Vasco Pereira da Silva, acompanhando Vieira de Andrade na separação da aceitação do acto do pressuposto da legitimidade, não vê quaisquer vantagens em reconhecer a aceitação do acto como pressuposto autónomo, parecendo-lhe ser mais apropriada a recondução da questão ao interesse em agir, em termos similares ao processo civel.
Está, então, feita a referência à legitimidade e aos problemas que dela advêm,uns mais contemporâneos e outros mais tradicionais, não tendo ainda nenhum deles uma solução legal, ficando esta tarefa nas mãos do intérprete e aplicador do Direito.

quinta-feira, 24 de março de 2011

"Admitir que um Tribunal condena a Administração seria claramente uma violação do Principio da Separação de Poderes"

Com a Revolução Francesa, em 1789, podemos dizer que “explodiu” como movimento irreversível o Liberalismo, sendo este um sistema político-económico baseado na defesa da liberdade individual e no chamado Estado de Direito, que luta contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal. Com o advento do Liberalismo muitos outros princípios, ainda hoje considerados como fundamentais na maioria dos Estados , foram surgindo e implementados, como é o caso do Principio da Separação de Poderes, desenvolvido por Montesquieu, no livro O Espírito das Leis (1748).
A separação entre os poderes públicos exige que os cidadãos possam aceder aos tribunais para obter reparação contra as lesões que sofram ou possam vir a sofrer nos seus direitos. Exige, também, o funcionamento de tribunais independentes e imparciais para administrar a justiça (o chamado poder judicial), um poder com a missão primordial de fazer leis (o denominado poder legislativo) e, por último, um poder com a missão de executar as leis e satisfazer interesses públicos (o poder administrativo).
Seguindo este princípio, se a Administração, que intervém nos mais variados domínios, com vista à satisfação dos importantes interesses públicos e prosseguindo-os tal como são definidos por lei e de acordo com esta, se ao exercer a sua actividade, actuar arbitrariamente violando os direitos ou interesses dos cidadãos ou a não prosseguir o interesse público, encontramos aqui o fundamento de um conflito, um conflito entre um particular e um poder público dotado de poderes próprios. Acresce ainda que o princípio da separação dos poderes manda os tribunais julgar, mas impede-os de administrar e assim não lhes permite invadir o terreno privado da função administrativa. É, então, necessário encontrar soluções equilibradas, soluções estas que acima de tudo respeitem o princípio da separação de poderes. Esta é uma questão difícil de resolver e tem a sua pedra de toque na execução das sentenças dos tribunais administrativos, uma vez que se for necessário impor a forca para fazer valer uma decisão judicial contra a Administração é necessário utilizar os meios da Administração contra ela própria.
Nos termos expostos, coloca-se agora a inicial questão de saber se perante a condenação para a prática de um acto à Administração Pública feita por um Tribunal, investido com o poder judicial, há de facto, ou não, uma violação do Principio da Separação de Poderes. Nesta questão, o Prof. Duarte Amorim Pereira, assume uma posição, fundada no artigo 268.º, número 4, in fine da CRP, de que condenar a Administração à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo que se consubstancie numa ilegal recusa ou omissão de uma pretensão formulada pelo particular. Neste caso, portanto, ainda que o requerimento do particular não tenha obtido qualquer resposta junto do órgão administrativo ou tenha merecido despacho de indeferimento expresso, o tribunal não se limita a devolver a questão ao referido órgão, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual acto de indeferimento, antes se pronuncia efectivamente sobre a pretensão material do requerente interessado, impondo a prática do acto devido – conferir artigos 66.º e 71.º do CPTA”. Importa, porém, ressalvar que o Tribunal não assume o papel da Administração Pública, o Tribunal não se pode subsumir a tomar a decisão que foi legalmente atribuída à Administração, o Tribunal apenas pode, analisando os limites legais e os princípios gerais e específicos da actividade administrativa concluir acerca da validade/invalidade, da legalidade/ilegalidade do acto administrativo praticado, sob pena de aí, sim, estar em causa uma violação directo do princípio da Separação de Poderes.
A posição aqui assumida e defendida vai, ainda, de encontro à posição do Tribunal Central Administrativo do Norte, assumida no Acórdão de 01/10/ 2010 que passo a citar: “O princípio da divisão ou da separação de poderes não implica hoje uma proibição absoluta ou sequer uma proibição-regra do juiz condenar, dirigir injunções ou orientações, intimar, sancionar, proibir ou impor comportamentos à Administração. Tal princípio implica tão-só uma proibição funcional do juiz afectar a essência do sistema de administração executiva, ou seja, não pode ofender a autonomia do poder administrativo [o núcleo essencial da sua discricionariedade], enquanto medida definida pela lei daquilo que são os poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos aos órgãos da Administração. Os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP (…)”.
Podemos assim concluir, após esta breve exposição que o princípio da Separação de Poderes não se encontra, nesta sede, violado, mas sim respeitado. Só nos deparamos com uma efectiva violação deste principio quando o Tribunal retira à Administração toda e qualquer margem de actuação, subsumindo-se-lhe nas suas funções de prossecução do interesse publico, e não tutelando outro direito igualmente constitucionalmente garantido dos particulares que é o direito de tutela dos seus direitos.

"Julgar a administração é ainda administrar" - Trauma do Contencioso

O contencioso administrativo tem a sua origem numa época de particular agitação política e social resultante da visão liberal de Estado que desencadeada pela Revolução Francesa de 1789 e nos ideais de separação de poderes preconizados por Montesquieu.
Deste modo, e tendo por base essa linha de raciocino, vem a desenvolver-se em França um sistema de Administração dito Executivo, cujas principais características se prendem com a separação entre a Administração e a Justiça, a enunciação solene dos direitos subjectivos invocáveis pelos particulares, a sujeição da Administração ao Direito Administrativo e aos Tribunais Administrativos e finalmente o privilégio de execução prévia. Estas características desenvolvem-se com base numa particular interpretação do princípio da separação de poderes segundo a qual, em vez de se reconhecer que “julgar a administração é ainda julgar”, preferia-se considerar que “julgar a administração é ainda administrar” e que a “jurisdição era o complemento da acção administrativa”.
Este entendimento trouxe consigo diversas dificuldades de conexão, nomeadamente no que diz respeito à relação da Administração e do exercício do poder administrativo face à justiça, ou seja, por outras palavras afigurava-se complicada a convivência entre o poder executivo e judicial. A reflectir esta concepção veio em França a lei sobre a organização judiciária de 1790 determinar, que as funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas, ressalvando no entanto, que os juízes não poderão, sob qualquer forma, perturbar as operações das autoridades administrativas nem de citar perante eles os administradores por virtude das suas funções.
Surgiu assim uma interpretação peculiar do princípio da separação dos poderes, completamente diferente da que prevalecia em Inglaterra preconizando que se o poder executivo não podia imiscuir-se nos assuntos da competência dos Tribunais, o poder judicial também não poderia interferir no funcionamento da Administração Pública.
Consequentemente, tendo por base esta ideia, entendeu-se em França que a força, a eficácia e a capacidade de intervenção da Administração Pública que se pretendia obter, levou o “conseil d' État” a considerar, ao longo do séc. XIX, que os órgãos e agentes administrativos não estão na mesma posição que os particulares, exercendo funções de interesse público e utilidade geral, e que devem por isso dispor de poderes de autoridade característicos, que lhes permitam impor as suas decisões aos particulares, bem como de privilégios ou imunidades pessoais que os salvaguardem das intromissões na sua esfera. Esta questão aliada à desconfiança dos revolucionários face aos tribunais judiciais comuns, concomitante com a vontade de conferir liberdade de acção à Administração, e ainda a tradição centralista do Antigo Regime conduziu a uma solução de natureza administrativa.
Em suma, podemos observar como uma interpretação adulterada do princípio da separação de poderes (considerada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva como um dos “traumas do contencioso administrativo”), condicionou todo o desenvolvimento do modelo de contencioso administrativo francês que ainda hoje continua em harmonia com a ideia de que “julgar a administração é ainda administrar”.

Tema - “Julgar a Administração é ainda administrar” - evolução do conceito no Estado de Direito.

Se a actividade desenvolvida pela Administração Pública passou, desde a época liberal, de uma “actividade limitada” para um actividade prestadora e “constitutiva”, como fez questão de mencionar Rogério Soares em 1955, também na consciência jurídica geral dos administrados se foi consolidando a convicção de que seria necessário dotar os tribunais de mecanismos de controlo adequados a esse intervencionismo crescente do Estado na Sociedade.

Inicialmente, porém, o aumento da participação do poder executivo na vida social não foi acompanhado do correspondente incremento das garantias jurisdicionais dos administrados. Ou seja, durante largos anos a Administração Pública escapava, em inúmeras das manifestações em que se revela a sua actividade, a um pleno controlo jurisdicional. Segundo o entendimento do professor Sérvulo Correia, o sistema francês do “administrador-juiz” permitia que a fiscalização da legalidade da conduta administrativa coubesse ao topo dessa mesma hierarquia administrativa, quer ao Rei quer aos directórios executivos, segundo a ideia de que “julgar a Administração é ainda administrar”.

Com a reforma do contencioso administrativo de 2002, do que se trata é de “superar definitivamente os velhos traumas da infância difícil do contencioso administrativo, como entende o professor Vasco Pereira da Silva, da confusão entre Administração e Justiça, para se passar a considerar que os tribunais administrativos são verdadeiros e próprios tribunais, pelo que os efeitos das suas sentenças não possuem qualquer limitação “natural”, antes devem ter por critério e medida os direitos dos particulares necessitados de tutela. Uma vez assegurada, no termo de uma evolução histórica longa e conturbada, a integral subordinação da Administração a regras jurídicas e a atribuição da fiscalização do cumprimento dessas regras a verdadeiros tribunais, trata-se agora de fechar o círculo e conferir aos tribunais administrativos os poderes de plena jurisdição que são próprios e indispensáveis ao adequado exercício da função judicial.

O professor Barbosa de Melo entende que, se, por um lado, aos olhos dos injustiçados e daqueles que querem justiça, os tribunais podem ser encarados como a instituição simbolicamente capaz de compensar as perversões do poder legislativo e do poder executivo e de garantir a ideia de objectividade que se supõe, por definição, inerente ao Estado e às suas manifestações, por outro lado, o absolutismo jurisdicional não pode conduzir à anulação do poder executivo, dado que isso poderá pôr em causa valores essenciais da governação republicana. Ao invés, se se admite uma reserva de administração dentro da qual o poder executivo goza de liberdade de conformação e de apreciação, esta não poderá obstar à competência dos tribunais para condenar as autoridades administrativas a indemnizar os particulares lesados pelos seus actos e comportamentos, dado que ninguém está sujeito a aceitar como fatalmente irreversíveis as decisões administrativas, sendo que só a decisão jurisdicional possuirá, por princípio, a virtude de estabelecer definitiva e irreversivelmente o que é de direito para o particular em cada situação administrativa concreta.

Hoje, segundo escreve Rita Pires, pode o Tribunal condenar a Administração sem que para isso incorra em violação do princípio da separação de poderes, uma vez que a visão clássica, onde cada poder é estático e permanece fechado no seu espaço individual de acção, não representa sequer um reflexo da realidade que hoje caracteriza o relacionamento entre poderes.


Ricardo Venâncio - Aluno 17518.

quarta-feira, 23 de março de 2011

"Os tribunais administrativos são os tribunais comuns da função administrativa" - problemas relacionados com o âmbito de jurisdição administrativa



Enquadramento histórico e actual. O ETAF de 1984 assentava numa perspectiva subalternizadora da jurisdição administrativa, incumbida de decidir questões cuja apreciação não fosse atribuída a outros tribunais. Durante o Estado Novo, o entendimento dominante na doutrina era o de que os tribunais administrativos não eram verdadeiros tribunais e reinava uma certa desconfiança sobre os mesmos. Eles não estariam integrados no Poder Judicial, seriam órgãos independentes ao serviço da AP. Mesmo com a transformação destes tribunais em verdadeiros tribunais com a Democracia, o preconceito ainda subsiste.
            Com a revisão de 1989, dá-se a “constitucionalização” da justiça administrativa, que a valoriza no sentido de a colocar em paridade com os tribunais judiciais. Os tribunais administrativos passam a ser um complexo de tribunais com um âmbito genérico de competências no domínio de operações materialmente administrativas.
            A competência dos tribunais administrativos deixa de ser residual, no sentido de apenas apreciar as questões que não sejam atribuídas a outros tribunais. Conquanto a jurisdição administrativa tiver os meios necessários para assegurar tal função sem diminuir garantias, os desvios à sua jurisdição não merecem justificação. E para dotar a jurisdição administrativa desses meios, as suas estruturas devem ser reforçadas, é indispensável a criação de uma verdadeira rede de tribunais administrativos, capaz de assegurar uma maior proximidade em relação ao cidadão. A instalação de uma tal rede é imperativa face à efectivação da Reforma.

Alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa. O art. 212º/3 CRP refere que são da competência dos tribunais administrativos as acções e recursos emergentes de relações jurídicas administrativas.
            à será que este preceito consagra uma reserva material absoluta de jurisdição? (1- os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo, 2- só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo)
            1 - Em tempos, a jurisprudência do TC e do STA apontava no sentido de que deviam ser consideradas inconstitucionais as leis que conferissem aos tribunais administrativos competência para o conhecimento de questões que não fossem emergentes de relações administrativas.
            A doutrina evoluiu no sentido contrário: admitia-se generalizadamente a atribuição aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à actividade da Administração, ainda que respeitassem a relações e aspectos de direito privado (ex. contratos privados da AP, responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão privada. E foi neste sentido que se deu a Reforma, que atribuiu expressamente aos tribunais administrativos a resolução de litígios não incluídos na cláusula geral do 212º/3.
            2 - Já quanto à questão de só os tribunais administrativos poderem julgar questões de direito administrativo, esta gera mais discussão: para alguns a CRP estabelece uma reserva, a não ser que o contrário venha constitucionalmente previsto (Gomes Canotilho) ou em caso de estado de necessidade (Mário Esteves de Oliveira); outros autores admitem a remissão para a jurisdição comum quando estejam em causa direitos fundamentais, de modo a assegurar uma protecção mais intensa (Freitas Amaral). O entendimento do TC e STA (e Vieira de Andrade e Sérvulo Correia) é a de que a CRP define um modelo típico que pode sofrer adaptações ou desvios em casos especiais, desde que o núcleo do modelo não fique prejudicado. Deve ser respeitado o núcleo essencial da organização material das jurisdições. Assim, a interpretação mais razoável é a de que a CRP visa apenas consagrar os tribunais administrativos como tribunais comuns em matéria administrativa. E foi esta interpretação que esteve na base da Reforma de 2002.

Delimitação legal do âmbito de jurisdição administrativa. O ETAF reafirma a cláusula geral estabelecida pela CRP no seu art. 1º, referindo-se a relações jurídicas administrativas. Depois o art. 4º enumera os litígios incluídos (4º/1) e excluídos (4º/2 e 3) da jurisdição administrativa. Mas esta enumeração é exemplificativa (“nomeadamente”).
            Em matéria de contratos e responsabilidade civil foi evidentemente feito um alargamento em relação à cláusula geral, com a Reforma de 2002:
            - em relação aos contratos, o 4º/1 b) confere competência aos tribunais administrativos para verificar a invalidade de quaisquer contratos, desde que esta invalidade seja consequência directa da invalidade do acto administrativo em que se fundou a celebração. Exige-se uma relação substancial adequada de causalidade entre as duas invalidades (invalidade consequente). O 4º/1 e) também atribui à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a interpretação, validade e execução de contratos (mesmo que puramente privados), desde que estejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (o mesmo para actos de entidades privadas, 100º/3 CPTA). O 4º/1 f) não é claro, mas parece querer delimitar a jurisdição administrativa pela natureza administrativa do contrato e enuncia três critérios: o objecto do contrato é passível de acto administrativo; o regime substantivo do contrato é regulado por normas de direito público; e uma das partes no contrato é uma entidade pública ou uma concessionária e as partes regularam o contrato por normas de direito público.
            - em relação à responsabilidade civil extracontratual do Estado, o 4º/1 g) atribui aos tribunais administrativos competência para questões relativas à responsabilidade por danos resultantes do exercício da função jurisdicional e legislativa. Aqui cabem os danos decorrentes de erros judiciários – excepto os visados no 4º/3 a) - (embora a propósito de actos materialmente jurisdicionais, a jurisprudência do STA seja ela própria divergente, uns acórdãos admitindo, outros recusando a possibilidade) e os danos decorrentes do funcionamento da administração da justiça, mesmo por parte dos tribunais judiciais. Quanto aos danos causados por actos de natureza administrativa por parte do juiz, MP ou autoridades policiais, apesar da sua impugnação se fazer junto dos tribunais judiciais (4º/2 c)), é dos tribunais administrativos a competência para conhecer das acções de responsabilidade – 4º/1 c). Também se atribui à competência dos tribunais administrativos litígios cujo objecto seja a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos decorrentes da sua actividade de gestão privada – parece ser esse o sentido das alíneas g) e h) do 4º/1. No fundo, o que interessa é tratarem-se de pessoas colectivas de direito público, independentemente da sua actividade ser de gestão pública ou privada. E quanto aos entes privados que exerçam poderes públicos (ex. concessionários) e aos entes privados administrativos? Os tribunais administrativos são competentes para conhecer dessas questões, conquanto seja aplicável o regime substantivo específico da responsabilidade de direito público4º/1 i).
            Notas: esta ampliação tem apenas um alcance processual, estas questões não passam a ser reguladas pelo direito administrativo, isto apenas significa que os tribunais administrativos passam a aplicar normas de direito privado. Perante o novo ETAF, ainda subsistem dúvidas quanto ao âmbito de jurisdição administrativa, sobretudo em comparação com o antigo ETAF. E embora o ETAF não as refira nas exclusões que faz nos arts. 4º/2 e 3, as questões sobre contra-ordenações e as indemnizações por expropriações estão subtraídas da competência dos tribunais administrativos. Mas a reversão da expropriação já é da sua competência.

Desvios legais. É atribuída competência para questões de direito administrativo a tribunais não administrativos:
                        - TC » questões relativas à disciplina dos juízes; declarar a perda de mandato de membros do executivo municipal e a destituição de titulares administrativos de cargos políticos.
                        - Tribunal de Contas » impugnação de actos de recrutamento de juízes deste tribunal.
                        - Tribunais Judiciais » contra-ordenações; indemnizações por expropriação; medidas especiais de polícia; impugnação de decisões da Segurança Social sobre apoio judiciário; impugnação de decisões administrativas sobre direitos de propriedade industrial; contencioso dos actos de registo e notariado; impugnação de decisões de entidades reguladoras.

 Ana Catarina Correia
Subturma 8
nº 17117


BIBLIOGRAFIA:
- Vasco Pereira da Silva, O Contencioso no divã da psicanálise, Almedina, 2009, pp. 476 e ss
- Viera de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 2007, pp. 99 e ss
- Freitas Amaral / Mário Aroso de Almeida, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina, 2007, pp. 25 e ss.

terça-feira, 22 de março de 2011

"Julgar a Administração é Ainda Administrar"

Quando se fala em Administração Pública, tem-se presente todo um conjunto de necessidades colectivas cuja satisfação é assumida como tarefa fundamental para a colectividade, através de serviços por esta organizados e mantidos.
Onde quer que exista e se manifeste com intensidade suficiente uma necessidade colectiva, aí surgirá um serviço público destinado a satisfaze-la, em nome e no interesse da colectividade.
As necessidades colectivas situam-se na esfera privativa da Administração Pública, trata-se em síntese, de necessidades colectivas que se podem reconduzir a três espécies fundamentais: a segurança; a cultura; e o bem-estar.

Fica excluída do âmbito administrativo, na sua maior parte a necessidade colectiva da realização de justiça. Esta função desempenhada pelos Tribunais, satisfaz inegavelmente uma necessidade colectiva, mas acha-se colocada pela tradição e pela lei constitucional (art. 205º CRP), fora da esfera da própria Administração Pública: pertence ao poder judicial.

Tal regime, na sua configuração actual, resulta historicamente dos princípios da Revolução Francesa, numa dupla perspectiva: por um lado, ele é um colorário do princípio da separação de poderes; por outro lado, é uma consequência da concepção na altura nova, da lei como expressão da vontade geral, donde decorre o carácter subordinado à lei da Administração Pública.

Foi com a célebre obra política De L` Èsprit dês Lois, publicada em 1748 por Montesquieu, onde formula a famosa teoria da separação de poderes, a qual teve maior repercussão na Europa e na América, que nasceu o contencioso administrativo. Para Monstesquieu existia liberdade politica para cada cidadão, se os poderes legislativo, executivo e judicial não estivessem reunidos nas mesmas mãos.

Numa primeira fase a que o professor Vasco Pereira da Silva designa  – “o pecado original” – há uma negação do principio da separação de poderes por parte da Administração, na medida em que existe uma visão distorcida entre administrar e julgar,  atribuindo-se aos órgãos da administração a tarefa de se julgarem a si próprios… tudo isto porque os revolucionários franceses ao invocarem o princípio da separação de poderes, interpretaram-no de forma errada, segundo a qual, em vez de se reconhecer que “julgar a administração é ainda julgar”, preferia-se considerar que “julgar a administração é ainda administrar” e que a “jurisdição era o complemento da acção administrativa”. Este periodo assumiu diferentes configurações ao longo dos tempos, o primeiro periodo decorreu entre 1789-1799 ; o segundo entre 1799-1872- denominado de sistema de "justiça reservada" e por último o periodo que compreende a data 1872 em diante, o sistema de "justiça delegada". Na segunda fase, os órgãos de topo da administração decidiam em matéria contenciosa sob consulta obrigatória do Conselho de Estado- sistema da justiça reservada, contudo esta consulta não era vinculativa. Por último, o referido órgão passou a ter a última palavra em matéria contenciosa – sistema da justiça delegada. Apesar da passagem do segundo período para o terceiro permitir que o órgão fiscalizador obtivesse maior autonomia, tal não resultou na modificação do modelo administrador-juiz para o dos tribunais administrativos.

O controlo jurisdicional efectivo da acção administrativa  assegura a boa administração (e nesta medida também o interesse público) e a efectivação da justiça no caso concreto. , «em muitíssimos casos, a Administração faz o que os tribunais ‘permitem’»  Julgar a Administração é, pois, ainda administrar.

BIBLIOGRAFIA:

PEREIRA DA SILVA, V., O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Ed. Almedina, 2009
Amaral, Diogo Freitas do,Curso de Direito Administrativo, Vol. I

domingo, 20 de março de 2011

Bem vindos ao Blog de Contencioso!

Bem vindos ao blog de Contencioso da Subturma 8!

Em primeiro lugar queria agradecer à Catarina Correia por ter criado o blog para a nossa subturma. Em segundo lugar venho apenas deixar uma mensagem de boas vindas e apelar para que iniciem os posts, dado que como o Professor Vasco Pereira e Silva referiu, era conveniente que todos fizessem um post até ao final desta semana.

Catarina Ruivo Rosa