quinta-feira, 21 de abril de 2011

Lesão de Direitos: pressuposto processual relativo ao conceito de acto administrativo impugnável ou à legitimidade para impugnar?

O conceito de acto impugnável tem gerado controvérsia na doutrina, no entanto, é ponto assente que a sua densificação parte em primeiro lugar da noção de acto administrativo, sendo este definido na lei como todas “as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta” (120º CPA).

A noção de acto administrativo permite-nos excluir desde já os actos instrumentais (propostas, comunicações, pareceres não vinculativos), que não sendo verdadeiras decisões não são actos administrativos logo não são susceptíveis de impugnação.

A questão que se suscita agora é a de saber se estes dois conceitos têm a mesma dimensão substancial ou não, ou seja, se são realidades diferentes ou se pelo contrário se reconduzem ao mesmo conceito.

VASCO PEREIRA DA SILVA considera que ambas as noções estão ligadas, não havendo nenhuma diferença substantiva entre os conceitos, sendo o conceito de acto impugnável, como consta do art. 51º do CPTA, um alargamento face à noção do 120º do CPA, na medida em que o acto impugnável consiste num acto administrativo que provoque uma lesão de direitos do particular, ou seja exige mais este segundo requisito. A Constituição considera mesmo que o direito de impugnar qualquer acto administrativo lesivo é um direito fundamental dos cidadãos (268º/4 CRP), independentemente da sua forma, o que parece ir ao encontro da noção de acto impugnável do Professor, que coloca o  ênfase do conceito na susceptibilidade de lesão.

Diferentemente, VIEIRA DE ANDRADE considera que o acto impugnável é por um lado mais restrito que o acto administrativo e por outro mais amplo. Segundo o Autor, o art. 51º do CPTA restringe o conceito de acto administrativo do 120º do CPA na medida em que apenas considera impugnáveis os actos administrativos que sejam dotados de eficácia externa, ou seja actos susceptíveis de produzir efeitos nas relações jurídicas administrativas externas; e amplia o conceito de acto administrativo ao permitir, no art. 51º/2 do CPTA que sejam impugnados actos emitidos por autoridades não integradas na Administração Pública.

O conceito de acto administrativo recorrível, actual acto impugnável, era definido pela doutrina e pela jurisprudência como um acto definitivo e executório, este conceito tinha como objectivo delimitar, dentro dos actos administrativos, aqueles que podiam ser objecto de impugnação contenciosa.

O acto definitivo implicava uma tripla definitividade (denominação de FREITAS DO AMARAL):
  • Horizontal: acto como resultado de um conjunto de formalidades, como conclusão do procedimento administrativo;
  • Vertical: acto praticado por aqueles que em cada momento ocupem o topo de uma hierarquia, ou seja, após esgotadas todas as possibilidades de recurso;
  • Material: acto com conteúdo decisório, como a decisão final.

Acto Executório enquanto acto vinculativo, que obriga por si e que é susceptível de execução coerciva.

Actualmente, o art. 51º do CPTA ao permitir a impugnação de actos procedimentais, recuperando o conceito de acto destacável (acto que desempenhando ainda uma função instrumental produz desde logo efeitos jurídicos substantivos), veio abandonar por completo a noção de acto definitivo horizontalmente. Admitindo como certo que já não é necessário que o acto seja definitivo horizontalmente para que seja impugnável, estamos então a admitir que todas as decisões administrativas preliminares podem ser impugnáveis, como é o caso dos pareceres vinculativos?

VIEIRA DE ANDRADE responde a esta questão dizendo que poderá aceitar-se esta impugnação como uma defesa antecipada, na medida em que a decisão final irá muito provavelmente causar lesões em direitos dos particulares, acrescentado ainda que esta possibilidade deveria decorrer directamente da lei, o que não acontece, mas que o art. 51º também não elimina esta hipótese. A não utilização desta defesa antecipada não faz precludir o direito de impugnação do acto final, solução que se retira do art. 51º/3. A jurisprudência tem seguido esta posição, nomeadamente no Acordão do STA de 16-12-2009, afirmando que “hoje, face ao artº 51º, nº 1 do CPTA, a impugnabilidade do acto administrativo, depende apenas da sua externalidade, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectem para fora do procedimento onde o acto se insere” e que “assim, torna-se irrelevante, para aferir da impugnabilidade do acto, que ele seja definitivo ou não, lesivo ou não, bem como a sua localização no procedimento (início, meio ou termo)”.

Em relação à definitividade material, dado que esta se reconduz ao conceito de acto administrativo, ao considerar que apenas é impugnável o acto com conteúdo decisório, podemos afirmar que continua a ter consagração legal. Resta saber se o mesmo se pode dizer em relação à definitividade vertical.

O legislador não fez qualquer referência à definitividade vertical no art. 51º mas também não houve nenhuma revogação expressa dos artigos 164º e 170º do CPA.

VASCO PEREIRA DA SILVA considera as normas que prevêem o recurso hierárquico necessário revogadas face à Reforma do CPTA, que não impõe a exaustão dos meios graciosos, considerando-as ainda inconstitucionais por violação do 268º/4 da CRP, pois ao impedir o particular de impugnar quando o acto não seja definitivo verticalmente está-se a negar o direito fundamental consagrado no preceito constitucional. Já MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera a falta de uma revogação expressa como um sinal de que os artigos mencionados ainda estão em vigor, rejeitando ainda a inconstitucionalidade dos mesmos dado que a consagração do direito fundamental de impugnação não impede que o legislador ordinário estabelece o pressuposto do recurso hierárquico necessário, até porque este pressuposto não implica a preclusão do direito de impugnar, o particular poderá sempre fazê-lo após o recurso. Sendo esta última posição também seguida pelo Tribunal Constitucional e pelo STA.

A redacção actual do art. 51º do CPTA parece então abandonar a ideia de acto definitivo e executório para um conceito de acto “com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”. Perante esta nova redacção o que é então o acto impugnável?

 A Proposta de Lei 92/VIII, que contém a Exposição de Motivos do CPTA, refere que “…procurou definir-se o acto administrativo impugnável tendo presente que ele pode não ser lesivo de direitos ou interesses individuais, mas sem deixar, de harmonia com o texto constitucional, de sublinhar o especial relevo que a impugnação de actos administrativos assume nesse caso. Por outro lado, deixa de se prever a definitividade como um requisito geral da impugnabilidade, não se exigindo que o acto tenha sido praticado no termo de uma sequência procedimental, ou no exercício de uma competência exclusiva para poder ser impugnado”.

Analisando o art. 51º conjugado com este excerto, podemos chegar à conclusão que a impugnabilidade do acto depende apenas da externalidade, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectem para fora do procedimento onde o acto se insere, podendo afectar a ordem jurídica exterior. Neste sentido MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, FERNANDES CADILHA e VIEIRA DE ANDRADE. Os dois primeiros autores afirmam ainda que “a virtualidade de o acto lesar um concreto interesse individual é sobretudo uma condição de legitimidade activa, que opera apenas em relação às acções impugnatórias de função subjectiva – artº 55º, nº 1 a) e d)”.

Como foi já referido, VASCO PEREIRA DA SILVA, ao contrário da posição indicada supra, sustenta que o art. 51º determina a impugnabilidade dos actos administrativos em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares, dando assim cumprimento ao 268º/4 CRP que estabelece um direito de fundamental de impugnação. A consagração deste preceito constitucional e a interpretação do art. 51º enquanto acto susceptível de lesar direitos dos particulares vem reforçar um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado e de natureza predominantemente subjectiva. 

O Professor refere ainda que a susceptibilidade de lesão dos direitos dos particulares “consiste num pressuposto processual relativo ao acto administrativo e não à legitimidade das partes, pois uma coisa é afirmar que um acto administrativo está em condições de produzir uma lesão em posições substantivas dos particulares, outra coisa é a alegação pelo particular da titularidade de um direito, que foi lesado por um acto administrativo ilegal.”

Ambas as posições têm argumentos fortes e com base legal, sendo uma questão de interpretação da lei. A primeira posição apresenta opta por uma interpretação mais literal do preceito, que refere como pressuposto processual a eficácia externa, conjugada com a proposta onde estão apresentados os motivos do CPTA. A segunda posição assenta na defesa de um conceito que corresponda ao direito fundamental consagrado na CRP e que prossegue o modelo de Justiça Administrativa subjectivista. Embora reconheça todo o valor à posição do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, que aposta na evolução de um modelo objectivista para um subjectivista, que é o grande motivo por detrás da Reforma de 2004, sendo uma posição que defende em primeiro lugar os direitos dos particulares, considero que, face aos argumentos apresentados por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e FERNANDES CADILHA, o art. 51º ainda não deu esse passo em frente na defesa dos particulares, considerando como pressuposto a eficácia externa, sendo o acto lesivo, à luz da lei, ainda um critério para aferir a legitimidade, o que não impede que o acto impugnável não possa coincidir no caso concreto com o acto lesivo.

Catarina Ruivo Rosa, nº 17221

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