quarta-feira, 27 de abril de 2011

Um olhar sobre o contencioso contratual na função administrativa

Nos meios contratuais vigorou, durante um largo período de tempo, uma dualidade contenciosa. Esta devia – se à distinção entre os ditos contratos administrativos (de tipo francês) e os contratos de direito privado da Administração, sendo que esta separação tinha efeitos substantivos (ou seja, considerava – se dever existir um regime jurídico especial, de direito público para os contratos administrativos e um regime comum, de direito privado para os contratos de direito privado) e efeitos processuais (os litígios referentes à interpretação, validade ou execução dos contratos administrativos eram da competência dos tribunais administrativos, e os demais contratos de direito privado cabiam na jurisdição dos tribunais comuns). Esta divergência relativamente aos contratos administrativos devia – se ao facto de nestes se considerar estar em causa o exercício de poderes autoritários, o que se coadunava com a visão do Direito administrativo como um conjunto de excepções ao direito comum.
No entanto, toda esta concepção sofreu alterações, na medida em que não se articulava com a ideia de Administração prestadora, própria do Estado Social. Ao longo dos tempos, pode – se constatar que os meios contratuais são os que melhor se adequam à tarefa de satisfação das necessidades das comunidades, para além de permitirem uma maior participação dos entes interessados. Estes meios ganham um peso cada vez mais significativo face aos demais instrumentos de actuação da Administração, nomeadamente, os actos administrativos, planos, entre outros. Face a esta nova postura da Administração não fazia sentido aquela dualidade contenciosa. A doutrina e o Direito Europeu deram um importante contributo no sentido do estabelecimento da desejada unidade de tratamento. O contrato administrativo perde peso face a outros modelos, ou seja, analisaram – se os vários aspectos em comum da actuação contratual no exercício da função administrativa e valorizou – se a submissão ao princípio da legalidade. O Direito Europeu veio permitir ainda a maior aproximação das formas contratuais, reconhecendo – se a necessidade de se estabelecerem regras jurídicas aplicáveis a todos os países europeus. Deste resulta as bases gerais dos contratos da função administrativa. É um fenómeno de integração vertical. De modo a evitar as dificuldades de implementação deste regime, deu – se primazia aos critérios materiais (v.g, respeitantes à natureza da actividade e os respeitantes aos fins prosseguidos) em detrimento dos critérios formais (ex: exercício de poder, estatuto das partes, gestão pública).
Portugal não ficou indiferente a este fenómeno europeu de unidade do contencioso contratual. Pôs – se fim à categoria dos contratos administrativos para efeitos processuais (consagrada no art. 4 nº1 als. b), e) e f) CPTA). O próprio Código dos Contratos Públicos de 2008 foi elaborado por força de uma directiva comunitária, revogando aquele a disciplina geral dos contratos administrativos que constava nos arts. 178 a 189 do CPA. No entanto, este diploma não contém plenamente uma unidade contenciosa. É certo que compreende uma disciplina geral completa (procedimental e material) dos contratos em que a Administração intervém, norteada pelas ideias de uniformização e simplificação da tramitação dos procedimentos pré – contratuais e das tipologias. Mas, verifica – se ainda uma dualidade conceptual entre os contratos administrativos e outros contratos da Administração (art. 1 nº1 CCP).
Ao nível da reforma do contencioso administrativo em Portugal, houve um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa às relações administrativas e fiscais, o que contribuiu para o estabelecimento de uma unidade nesta matéria (tudo isto apesar do que sucede no CCP, acima referido).
No art. 1 nº1 do ETAF está consagrada uma cláusula geral de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, em função da natureza da relação jurídica em litigio, sendo que no art. 4 nº1 als. a) a n) consagra – se um conjunto de situações que se integram nessa cláusula (mas o elenco é meramente exemplificativo). Portanto, está consagrada a competência dos tribunais administrativos e fiscais para várias situações que correspondem ao exercício da função administrativa. O critério da relação jurídica administrativa assume uma importância notável, estabelecendo aqui a conexão entre o direito substantivo e o direito processual.  É um critério que consegue abarcar várias formas de interacção da Administração com os particulares, demonstrando grande adaptabilidade e permite apontar as fraquezas da actuação da Administração através do acto administrativo. A relação jurídica administrativa conta com vários índices que a permitem caracterizar no caso concreto: são os que se encontram no art. 4 nº1 do ETAF (no entanto, como já se referiu, esse elenco não é taxativo, sendo que estes elementos são passíveis de serem combinados). «Relação jurídica administrativa não é adequada apenas por razões de ordem formal, devido à sua utilidade como instrumento técnico – jurídico, mas igualmente por motivos de ordem material, por se entender que ela corresponde ao modo mais correcto de conceber o relacionamento entre a Administração e os privados num Estado de Direito. Pois, a relação administrativa vai buscar à própria Constituição (dos modernos Estados de Direito) o fundamento da sua aplicabilidade.»
No entanto, o art. 4 nº1, em algumas das suas alíneas não foi inteiramente feliz. É o que sucede na al. b). Nesta alínea refere – se ao contrato consequente do acto inválido. Mas saber se o acto anterior é ou não inválido é uma questão a ser solucionada por sentença judicial, cuja pode também julgar o contrato subsequente através da possibilidade de cumulação de pedidos relativos a actos e contratos, em acção especial. Além disso a alínea em causa fala em “acto”, mas como o preceito não é taxativo, este deve valer para outras formas de actuação da Administração (por exemplo, regulamentos). Os litígios emergentes dos contratos em causa tanto podem dar lugar à acção administrativa comum como à acção administrativa especial. Quando que se verifique uma cumulação de pedidos relativos a um contrato com pedidos referentes a um acto administrativo (pode um ser acto de procedimento pré – contratual ou qualquer acto emitido no decurso da relação contratual ou uma norma regulamentar), o meio adequado é a acção especial (art. 5º nº1 CPTA). Sempre que exista um ou vários pedidos em cumulação, mas todos respeitantes a um contrato de jurisdição administrativa, o meio processual próprio é a acção administrativa comum (pedidos de simples apreciação, de anulação e de condenação de natureza contratual).
Este regime não vale apenas para a Administração Pública. Dois particulares, quando celebram um contrato, colaborando com a Administração Pública, podem optar por um regime de direito público. Tal consubstancia uma manifestação típica da Administração infra – estrutural. Neste campo, o que está em causa é um alargamento da jurisdição administrativa, quando estes particulares colaboram com a Administração, tanto de forma duradoura como transitória. Mesmo que as partes acordem uma cláusula de submissão dos litígios a uma jurisdição que não a administrativa, deve ter – se esta como “não escrita”, por violação do princípio (legal e constitucional) de delimitação de competência da jurisdição administrativa em função da natureza administrativa da relação.
No respeitante aos contratos atípicos, o Sr. Prof. Mário Aroso de Almeida considera, que se não houver uma estipulação das partes no sentido de aqueles se regerem pelo regime de direito público e que não tenham um objecto passível de acto administrativo devem deixar de ser qualificados como contratos administrativos. Mas, este Professor ainda considera que caso o contrato atípico de objecto passível de contrato privado ainda será de qualificar como administrativo, se, atendendo ao conteúdo deste, conferir de modo expresso e inequívoco, a possibilidade de o contraente público exercer poderes específicos de autoridade no âmbito da relação, mediante a prática de actos administrativos.
Apesar de se ter verificado um esforço para ultrapassar os antigos problemas de dualismo contencioso contratual (em alguns casos bem sucedido), tal não evitou que surgissem novas formas de dualismo. É o que sucede no art. 4º nº3 al. d) do ETAF, onde são afastados da jurisdição administrativa os litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que umas das partes seja uma pessoa colectiva de direito público. O Prof. Vasco Pereira da Silva critica esta solução legislativa, porque cria uma nova e indesejável dualidade jurisdicional em relação aos contratos, cujos não devem deixar de pertencer ao âmbito da função administrativa (apesar das diferenças de forma e regime jurídico aplicável). Apesar de poder existir regimes contratuais diferentes em função de certas tarefas administrativas, o Sr. Prof. considera que se deve admitir a celebração de contratos individuais de trabalho. Mas o facto de ocorrer a dita “fuga para o direito privado”, não desvincula as entidades públicas da prossecução dos fins da actividade administrativa, como do mesmo modo que não deveria ter significado a criação de uma dualidade jurisdicional para esta modalidade de contratos. Para o Prof., a solução mais correcta (e que melhor se adequa ao nosso sistema) seria transferir todo o “direito laboral administrativo” para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, dando prevalência ao critério da função administrativa sobre o do regime jurídico. Esta solução legislativa também acarreta outros problemas, mormente, a conciliação do disposto no ETAF com o da Lei do Contrato de Trabalho na Administração Pública. O ETAF exclui do âmbito da jurisdição administrativa o contrato individual de trabalho, mas no art. 4 nº1 al. e) do mesmo diploma, cabe no âmbito da jurisdição administrativa qualquer contrato que seja antecedido de procedimento administrativo, como é o que sucede com o contrato individual de trabalho na Administração Pública. O que sucede, portanto, é que para efeitos processuais, é que este contrato é qualificado e desqualificado como administrativo pela mesma disposição.
Pressupostos processuais – As particularidades da legitimidade e da oportunidade
Legitimidade
Estando em causa um negócio jurídico bilateral, tal justifica a existência de regras especiais de legitimidade (art. 40 CPTA). Face ao peso crescente desta forma de actuação, é necessário que se descubram novas formas de intervenção processual de modo a garantir a tutela dos vários interesses envolvidos. De acordo com o critério do Sr. Prof. Vasco Pereira da Silva, sempre que os particulares sejam afectados por tal actuação e sejam merecedores de tutela jurídica, eles não são terceiros face a esta relação jurídica administrativa estabelecida entre outros privados e a Administração, mas são tidos como partes de uma relação multilateral cuja abrange vários sujeitos. Mas, o CPTA veio consagrar amplamente o pressuposto processual em causa, distinguindo para o efeito, os pedidos relativos à interpretação e à validade dos contratos (art. 40 nº1) e os pedidos relativos à respectiva execução (nº2 do mesmo preceito). O Prof. questiona se esta separação terá sido uma boa solução em termos processuais, pois tanto num pedido como no outro, há um alargamento da legitimidade. Em relação ao primeiro pedido acima referido, consagra – se, através do alargamento da legitimidade a todos os particulares afectados, o princípio constitucional da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares. Gozam de legitimidade todos os sujeitos referidos no nº1 do art. 40, quando estejam em causa pedidos relativos à interpretação e à validade dos contratos. Pedido de invalidação do contrato pode ter por base a invalidade própria (exclusiva ou comum) ou invalidade derivada do procedimento pré – contratual, se bem que este último caso seja de mais rara verificação.  O Prof. critica esta opção legislativa de conferir legitimidade aos sujeitos que não gozem de um interesse pessoal na demanda, ou seja, através da Acção Popular. O que está em causa é uma relação jurídica bilateral emergente de um negócio jurídico (bilateral), pelo que não faz sentido, no entendimento deste Professor, estar a conferir legitimidade como se estivesse em causa uma relação decorrente de uma actuação unilateral da Administração. Já em relação aos pedidos relativos à execução dos contratos, gozam de legitimidade os sujeitos referidos no nº2 do art. 40. Mais uma vez, o Prof. não concorda com a opção legislativa de conferir legitimidade aos sujeitos que não tenham um interesse processual na demanda (Acção Popular). Os critérios que concedem legitimidade ao Ministério Público são mais exigentes do que os referentes à Acção Popular, na medida em que condicionam a sua intervenção à existência de um interesse público especialmente relevante, o que não sucede na segunda figura. Tanto num caso como no outro está em causa a prossecução de valores e bens constitucionalmente protegidos (art. 9 nº2 CPTA), e além disso, o Ministério Público é um organismo do Estado que visa a defesa da legalidade e do interesse público (art. 219 CRP), pelo que esta exigência não tem fundamento.
Oportunidade
Se a acção administrativa comum, mesmo a respeitante a pedidos relativos a contratos, não está sujeita a qualquer prazo (art. 41 nº1 CPTA), a impugnação de contratos da função administrativa está sujeita a um prazo de seis meses contados da data da celebração do contrato ou, relativamente a terceiros, do conhecimento do seu clausulado (art. 41 nº2 CPTA). É um prazo de caducidade. A ratio desta regra parece ser estabelecimento de um paralelismo entre o regime aplicável à impugnação de actos e à impugnação de contratos. No entanto, o Sr. Prof. Vasco Pereira da Silva não concorda com esta solução. O que está em causa é um negócio jurídico bilateral, pelo que o fundamento não é o mesmo, ou seja, o prazo referente à impugnação dos actos tem subjacente a ideia de estabilidade e tutela da confiança dos particulares que justificam os prazos para reagir contra os actos unilaterais da administração. Estes problemas não se colocam do mesmo modo em relação ao negócio jurídico bilateral, em que a produção dos efeitos é fruto da vontade das partes. Assim, o Professor considera que não é o mais acertado o estabelecimento de prazos processuais especiais no contencioso de impugnação dos contratos, bastando apenas os prazos substantivos para o exercício dos direitos, atenta a natureza da relação contratual. Além disso, refere que se deve fazer uma interpretação restritiva desta disposição, de modo a não estender este prazo aos pedidos de condenação, cujos devem poder ser propostos a todo o tempo, e que também não se deve considerar que eles possuem qualquer efeito preclusivo do julgamento futuro das relações contratuais, aplicando aqui por analogia o disposto no art. 38 do CPTA, sob pena de se estar a criar um regime de inimpugnabilidade mais gravoso para os contratos da função administrativa do que para os actos administrativos.

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