sábado, 26 de março de 2011

Do Acto Administrativo liberal e d' A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp

 (A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp - Rembrandt)
     1789, França. Por entre o fogo e o ferro nas mãos da turba, um velho mundo é sepultado, e um novo nasce. Parte desse novo mundo é uma organização da polis como nunca antes havia sido vista, a qual assentava na estrita separação de poderes, como Montesquieu definiu em L'Esprit des Lois, obra base dos maestros da ordem pós revolucionária francesa. A essa nova ordem chamou-se Estado Liberal.
     
     Cabe neste post, caracterizar a relação entre Acto Administrativo e Estado Liberal, e de como um e outro formam uma relação simbiótica quase inabalável.
   
     À época do Estado Liberal, deparava-mo-nos com uma Administração cuja a orientação era grandemente de oposição ao particular, contendo esta um verdadeiro cariz agressivo,não tendo qualquer vocação prestadora (figura para a qual no futuro a Administração evoluirá), mas sim a de assegurar ao particular a sua liberdade de actuação política e económica, no estrito cumprimento da já referida separação de poderes, separação esta enquadrada pelo Princípio da Legalidade, Princípio o qual consubstancia apenas o limite máximo de actuação da Administração, deixando uma larga margem de liberdade de modo a que se encontrasse capacitada para atingir o seu fim último, o de administrar a res publica, se necessário em frontal confronto com a vontade privada (a qual devia, como nos dias de hoje, ceder ao verdadeiro interesse público). Desta feita, a Administração socorre-se da figura 'Acto Administrativo', o qual tinha por magna função, exprimir a oposição da Administração face ao particular.
     
   Aqui chegados, dissequemos o Acto Administrativo desta época. O Acto Administrativo é um conceito semeado e cultivado pela jurisprudência administrativa, com o fim de delimitar a zona de acção da Administração. Com a evolução do Direito Administrativo veio a tornar-se a pedra de toque de todo um edifício jurídico-administrativo, habilmente esculpido pela doutrina, a qual o lima e configura naquilo que mais tarde conheceremos. De acordo com o Professor Freitas do Amaral, ainda em 1989, bem antes da revolucionária reforma de 2003, a principal função do Acto era a de enquadrar a actuação da Administração, de modo a proteger e salvaguardar o cidadão. Seria então o Acto uma eficaz protecção Constitucionalmente consagrada contra o eventual poder público abusivo e arbitrário.
     
   Cabe então, como vimos, à doutrina dos fins do século XIX, inícios do século XX, teorizá-lo e torná-lo o centro do funcionamento do Estado de Direito. Esta lapidação magistralmente executada corresponderá ao que hoje chamamos teoria clássica do Estado de Direito, a qual cristalizava o Acto Administrativo como o fim em si mesmo da elaboração teórica do Direito Administrativo. Assim, bem se vê, sofre o  Acto Administrativo do estigma de o quererem tornar o umbigo da ciência administrativa, sem que para tal ele se encontrasse capacitado, dada a vastidão do que é a realidade administrativa - um verdadeiro caso de complexo de superioridade, como certamente atestaria Alfred Adler!

     Das mais exemplificativas imagens do acima exposto são as construções dogmáticas protagonizadas por Hauriou e Mayer, ambas de natureza autoritária. Para Maurice Hauriou o Acto Administrativo seria amplamente entendido, tornando-se uma realidade paralela ao negócio jurídico, sendo, no entanto, o acto executorio a máxima manifestaçao do poder administrativo alicerçado no imperium do Estado. Diversamente de Hauriou, Otto Mayer aproxima o Acto Administrativo da sentença judicial, dado que ambas as realidades encerram em si um comando imperativo dirigido ao particular, o qual, independentemente da sua vontade, terá de o acatar. Assim, tanto a sentença como o acto encontram na coercibilidade estadual (ainda que não violenta) a sua legitimidade final.

     Como foi então descrito, o Acto Administrativo é um produto de uma forma de teorizar todo um ramo de Direito numa determinada época - a do Estado Liberal -, pelo que se adequa perfeitamente à necessidade sentida, que era a de ter um Direito racional, desenhado a régua e esquadro, bem revelador do fosso que separava o Leviatã estadual do pequeno cidadão privado.

     Como tudo, o próprio Estado evoluiu, neste caso em direcção ao estado social, mas no entanto, a teorização do Acto Administrativo manteve-se relativamente inalterada, como se de uma bactéria multirresistente se tratasse. O acto, de natureza agressivo sobreviveu e, prosperou até, como prova a realidade vivida em Portugal durante os anos do Estado Novo (referência seja feita a Marcello Caetano que através dos seus trabalhos corporizou no Código Administrativo de 1936-40 e nas normas reguladores do Supremo Tribunal Administrativo, os ensinamentos e doutrina de Hauriou e Mayer). Mas se no contexto de um Estado autoritário não choca tal visão musculada do Acto Administrativo, já esta mesma visão choca frontalmente com os mais singelos imperativos de lógica presentes em qualquer estudioso de Dirieto Amdinistrativo, que se vê impossibilitado de compreender qual a razão que leva Estados, com uma larga e  fundadora tradição democrática da sociedade e até antropocêntrica do Direito, a ainda hoje consagrarem esta orientação doutrinária. É, porém, essa uma discussão a qual prefiro guardar para um futuro post, dado que só por si é uma matéria de grande interesse e elevada densidade dogmática.

Carlos Miguel Vaz Serra
nº15811
Subturma 8

Sem comentários:

Enviar um comentário