quinta-feira, 24 de março de 2011

"Julgar a administração é ainda administrar" - Trauma do Contencioso

O contencioso administrativo tem a sua origem numa época de particular agitação política e social resultante da visão liberal de Estado que desencadeada pela Revolução Francesa de 1789 e nos ideais de separação de poderes preconizados por Montesquieu.
Deste modo, e tendo por base essa linha de raciocino, vem a desenvolver-se em França um sistema de Administração dito Executivo, cujas principais características se prendem com a separação entre a Administração e a Justiça, a enunciação solene dos direitos subjectivos invocáveis pelos particulares, a sujeição da Administração ao Direito Administrativo e aos Tribunais Administrativos e finalmente o privilégio de execução prévia. Estas características desenvolvem-se com base numa particular interpretação do princípio da separação de poderes segundo a qual, em vez de se reconhecer que “julgar a administração é ainda julgar”, preferia-se considerar que “julgar a administração é ainda administrar” e que a “jurisdição era o complemento da acção administrativa”.
Este entendimento trouxe consigo diversas dificuldades de conexão, nomeadamente no que diz respeito à relação da Administração e do exercício do poder administrativo face à justiça, ou seja, por outras palavras afigurava-se complicada a convivência entre o poder executivo e judicial. A reflectir esta concepção veio em França a lei sobre a organização judiciária de 1790 determinar, que as funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas, ressalvando no entanto, que os juízes não poderão, sob qualquer forma, perturbar as operações das autoridades administrativas nem de citar perante eles os administradores por virtude das suas funções.
Surgiu assim uma interpretação peculiar do princípio da separação dos poderes, completamente diferente da que prevalecia em Inglaterra preconizando que se o poder executivo não podia imiscuir-se nos assuntos da competência dos Tribunais, o poder judicial também não poderia interferir no funcionamento da Administração Pública.
Consequentemente, tendo por base esta ideia, entendeu-se em França que a força, a eficácia e a capacidade de intervenção da Administração Pública que se pretendia obter, levou o “conseil d' État” a considerar, ao longo do séc. XIX, que os órgãos e agentes administrativos não estão na mesma posição que os particulares, exercendo funções de interesse público e utilidade geral, e que devem por isso dispor de poderes de autoridade característicos, que lhes permitam impor as suas decisões aos particulares, bem como de privilégios ou imunidades pessoais que os salvaguardem das intromissões na sua esfera. Esta questão aliada à desconfiança dos revolucionários face aos tribunais judiciais comuns, concomitante com a vontade de conferir liberdade de acção à Administração, e ainda a tradição centralista do Antigo Regime conduziu a uma solução de natureza administrativa.
Em suma, podemos observar como uma interpretação adulterada do princípio da separação de poderes (considerada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva como um dos “traumas do contencioso administrativo”), condicionou todo o desenvolvimento do modelo de contencioso administrativo francês que ainda hoje continua em harmonia com a ideia de que “julgar a administração é ainda administrar”.

Sem comentários:

Enviar um comentário