quarta-feira, 23 de março de 2011

"Os tribunais administrativos são os tribunais comuns da função administrativa" - problemas relacionados com o âmbito de jurisdição administrativa



Enquadramento histórico e actual. O ETAF de 1984 assentava numa perspectiva subalternizadora da jurisdição administrativa, incumbida de decidir questões cuja apreciação não fosse atribuída a outros tribunais. Durante o Estado Novo, o entendimento dominante na doutrina era o de que os tribunais administrativos não eram verdadeiros tribunais e reinava uma certa desconfiança sobre os mesmos. Eles não estariam integrados no Poder Judicial, seriam órgãos independentes ao serviço da AP. Mesmo com a transformação destes tribunais em verdadeiros tribunais com a Democracia, o preconceito ainda subsiste.
            Com a revisão de 1989, dá-se a “constitucionalização” da justiça administrativa, que a valoriza no sentido de a colocar em paridade com os tribunais judiciais. Os tribunais administrativos passam a ser um complexo de tribunais com um âmbito genérico de competências no domínio de operações materialmente administrativas.
            A competência dos tribunais administrativos deixa de ser residual, no sentido de apenas apreciar as questões que não sejam atribuídas a outros tribunais. Conquanto a jurisdição administrativa tiver os meios necessários para assegurar tal função sem diminuir garantias, os desvios à sua jurisdição não merecem justificação. E para dotar a jurisdição administrativa desses meios, as suas estruturas devem ser reforçadas, é indispensável a criação de uma verdadeira rede de tribunais administrativos, capaz de assegurar uma maior proximidade em relação ao cidadão. A instalação de uma tal rede é imperativa face à efectivação da Reforma.

Alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa. O art. 212º/3 CRP refere que são da competência dos tribunais administrativos as acções e recursos emergentes de relações jurídicas administrativas.
            à será que este preceito consagra uma reserva material absoluta de jurisdição? (1- os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo, 2- só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo)
            1 - Em tempos, a jurisprudência do TC e do STA apontava no sentido de que deviam ser consideradas inconstitucionais as leis que conferissem aos tribunais administrativos competência para o conhecimento de questões que não fossem emergentes de relações administrativas.
            A doutrina evoluiu no sentido contrário: admitia-se generalizadamente a atribuição aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à actividade da Administração, ainda que respeitassem a relações e aspectos de direito privado (ex. contratos privados da AP, responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão privada. E foi neste sentido que se deu a Reforma, que atribuiu expressamente aos tribunais administrativos a resolução de litígios não incluídos na cláusula geral do 212º/3.
            2 - Já quanto à questão de só os tribunais administrativos poderem julgar questões de direito administrativo, esta gera mais discussão: para alguns a CRP estabelece uma reserva, a não ser que o contrário venha constitucionalmente previsto (Gomes Canotilho) ou em caso de estado de necessidade (Mário Esteves de Oliveira); outros autores admitem a remissão para a jurisdição comum quando estejam em causa direitos fundamentais, de modo a assegurar uma protecção mais intensa (Freitas Amaral). O entendimento do TC e STA (e Vieira de Andrade e Sérvulo Correia) é a de que a CRP define um modelo típico que pode sofrer adaptações ou desvios em casos especiais, desde que o núcleo do modelo não fique prejudicado. Deve ser respeitado o núcleo essencial da organização material das jurisdições. Assim, a interpretação mais razoável é a de que a CRP visa apenas consagrar os tribunais administrativos como tribunais comuns em matéria administrativa. E foi esta interpretação que esteve na base da Reforma de 2002.

Delimitação legal do âmbito de jurisdição administrativa. O ETAF reafirma a cláusula geral estabelecida pela CRP no seu art. 1º, referindo-se a relações jurídicas administrativas. Depois o art. 4º enumera os litígios incluídos (4º/1) e excluídos (4º/2 e 3) da jurisdição administrativa. Mas esta enumeração é exemplificativa (“nomeadamente”).
            Em matéria de contratos e responsabilidade civil foi evidentemente feito um alargamento em relação à cláusula geral, com a Reforma de 2002:
            - em relação aos contratos, o 4º/1 b) confere competência aos tribunais administrativos para verificar a invalidade de quaisquer contratos, desde que esta invalidade seja consequência directa da invalidade do acto administrativo em que se fundou a celebração. Exige-se uma relação substancial adequada de causalidade entre as duas invalidades (invalidade consequente). O 4º/1 e) também atribui à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a interpretação, validade e execução de contratos (mesmo que puramente privados), desde que estejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (o mesmo para actos de entidades privadas, 100º/3 CPTA). O 4º/1 f) não é claro, mas parece querer delimitar a jurisdição administrativa pela natureza administrativa do contrato e enuncia três critérios: o objecto do contrato é passível de acto administrativo; o regime substantivo do contrato é regulado por normas de direito público; e uma das partes no contrato é uma entidade pública ou uma concessionária e as partes regularam o contrato por normas de direito público.
            - em relação à responsabilidade civil extracontratual do Estado, o 4º/1 g) atribui aos tribunais administrativos competência para questões relativas à responsabilidade por danos resultantes do exercício da função jurisdicional e legislativa. Aqui cabem os danos decorrentes de erros judiciários – excepto os visados no 4º/3 a) - (embora a propósito de actos materialmente jurisdicionais, a jurisprudência do STA seja ela própria divergente, uns acórdãos admitindo, outros recusando a possibilidade) e os danos decorrentes do funcionamento da administração da justiça, mesmo por parte dos tribunais judiciais. Quanto aos danos causados por actos de natureza administrativa por parte do juiz, MP ou autoridades policiais, apesar da sua impugnação se fazer junto dos tribunais judiciais (4º/2 c)), é dos tribunais administrativos a competência para conhecer das acções de responsabilidade – 4º/1 c). Também se atribui à competência dos tribunais administrativos litígios cujo objecto seja a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos decorrentes da sua actividade de gestão privada – parece ser esse o sentido das alíneas g) e h) do 4º/1. No fundo, o que interessa é tratarem-se de pessoas colectivas de direito público, independentemente da sua actividade ser de gestão pública ou privada. E quanto aos entes privados que exerçam poderes públicos (ex. concessionários) e aos entes privados administrativos? Os tribunais administrativos são competentes para conhecer dessas questões, conquanto seja aplicável o regime substantivo específico da responsabilidade de direito público4º/1 i).
            Notas: esta ampliação tem apenas um alcance processual, estas questões não passam a ser reguladas pelo direito administrativo, isto apenas significa que os tribunais administrativos passam a aplicar normas de direito privado. Perante o novo ETAF, ainda subsistem dúvidas quanto ao âmbito de jurisdição administrativa, sobretudo em comparação com o antigo ETAF. E embora o ETAF não as refira nas exclusões que faz nos arts. 4º/2 e 3, as questões sobre contra-ordenações e as indemnizações por expropriações estão subtraídas da competência dos tribunais administrativos. Mas a reversão da expropriação já é da sua competência.

Desvios legais. É atribuída competência para questões de direito administrativo a tribunais não administrativos:
                        - TC » questões relativas à disciplina dos juízes; declarar a perda de mandato de membros do executivo municipal e a destituição de titulares administrativos de cargos políticos.
                        - Tribunal de Contas » impugnação de actos de recrutamento de juízes deste tribunal.
                        - Tribunais Judiciais » contra-ordenações; indemnizações por expropriação; medidas especiais de polícia; impugnação de decisões da Segurança Social sobre apoio judiciário; impugnação de decisões administrativas sobre direitos de propriedade industrial; contencioso dos actos de registo e notariado; impugnação de decisões de entidades reguladoras.

 Ana Catarina Correia
Subturma 8
nº 17117


BIBLIOGRAFIA:
- Vasco Pereira da Silva, O Contencioso no divã da psicanálise, Almedina, 2009, pp. 476 e ss
- Viera de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 2007, pp. 99 e ss
- Freitas Amaral / Mário Aroso de Almeida, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina, 2007, pp. 25 e ss.

Sem comentários:

Enviar um comentário