quarta-feira, 13 de abril de 2011

Impugnação de actos administrativos

O art. 212º/3 CRP confina aos tribunais administrativos o julgamento dos processos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. É uma cláusula geral através da qual se define o âmbito material do exercício da função jurisdicional através da ordem jurisdicional administrativa. O acto administrativo é um tópico de densificação dessa cláusula geral. Com a revisão de 1997, o art. 268º/4 CRP refere-se ao acto administrativo a par da impugnação de quaisquer actos administrativos e da determinação à prática de actos legalmente devidos. Deste modo, o acto administrativo surge configurado também ele como uma cláusula geral de determinação parcial do âmbito da jurisdição administrativa. Mas a cláusula geral de acto administrativo insere-se numa outra cláusula geral mais ampla, que é a de relações jurídicas administrativas.
Através do acto administrativo chega-se à relação jurídica administrativa, assim se podendo concluir pela pertença do litígio à jurisdição administrativa. Verifica-se uma interacção entre uma realidade procedimental e uma realidade substantiva: a partir do momento em que o acto administrativo cruza a relação jurídica administrativa, as duas realidades tornam-se indissociáveis.
O âmbito de jurisdição administrativa deve ser conjugado com o princípio da separação de poderes: para que se cumpra o objectivo, o tribunal não pode substituir-se à AP nem controlar o mérito das suas actuações, mas nada impede o Tribunal de actuar “a montante” do acto, através da condenação à prática do acto legalmente devido, e “a jusante”, através do recurso contencioso de anulação.
Uma última nota importante: a perspectiva da abertura de um processo administrativo apenas após o encerramento do procedimento está longe da realidade mais comum. Hoje, assiste-se a uma multiplicação de actos administrativos que servem de elemento de conexão entre o procedimento e o processo e que não são actos conclusivos da fase decisória do procedimento. Exemplos: é permitida a impugnabilidade de todos os actos horizontalmente não definitivos mas lesivos; o caso de execução de julgados.

A função de impugnação de actos administrativos é a do controlo da sua invalidade. Este meio serve para obter a declaração de nulidade/inexistência (sentenças declarativas) ou anulação (sentenças constitutivas) de actos administrativos.

            Com a Reforma de 2004, foi eliminada a exigência de esgotamento prévio das garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais: é possível impugnar desde logo os actos sem prévio recurso hierárquico necessário.       

O acto administrativo impugnável é um pressuposto processual específico da AAE.

            Conceito de acto impugnável: à partida, serão impugnáveis todos os actos (decisões) administrativos materiais (120º CPA) de autoridade (hoje, foi ultrapassado o conceito de Administração Agressiva que emite actos de autoridade, para dar lugar a um contencioso que tem por objecto o controlo de toda a função administrativa), que visem produzir efeitos numa situação individual e concreta, independentemente da sua forma. Serão inimpugnáveis, por exemplo, os pareceres (excepto vinculativos), as operações materiais de execução, informações, avisos, etc.

            Nem todos os actos administrativos são, porém, impugnáveis:
à por um lado, o acto impugnável não depende da qualidade administrativa do seu autor; pode ser impugnada uma decisão tomada por entidade privada que exerça funções públicas e pode ser impugnado um acto emitido por uma entidade não integrada na AP – 51º/2 CPTA. (Este preceito refere ainda que são impugnáveis actos de execução.)
à por outro lado, só são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, em especial, os actos cujo conteúdo é susceptível de lesar direitos e interesses legalmente protegidos – 51º/1 CPTA. Actos com eficácia externa são os que produzem ou constituem efeitos nas relações jurídicas administrativas externas (entre particulares), independentemente da respectiva eficácia concreta. Podem tratar-se de actos inseridos num procedimento em que produzem efeitos externos de modo autónomo ao acto principal ou de actos que integrem um subprocedimento (actos prévios).
            Assim, os actos administrativos impugnáveis são hoje uma realidade muito ampla, que abrange tanto as decisões finais que criam efeitos jurídicos novos, como actuações imediatamente lesivas dos direitos dos particulares, tais como os actos intermédios, as decisões preliminares ou simples actos de execução. A noção de impugnabilidade está hoje alargada e a faculdade de impugnação está incluída no direito fundamental de acesso à justiça administrativa (268º/4 CRP).

            E serão impugnáveis as decisões preliminares (pré-decisões, pareceres vinculativos, actos pré-contratuais…) que determinem a decisão final de um procedimento, mas que não constituem efeitos externos? É possível sustentar a sua impugnabilidade com base numa ideia de ‘defesa antecipada’, porque são prováveis de causar lesões nos direitos dos particulares.

            Há que esclarecer também que são impugnáveis os actos procedimentais e não apenas as decisões finais. E se eles não forem impugnados desde logo, não se preclude a hipótese de ser impugnada a decisão final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento – 51º/3.



Casos Especiais:

1.       Acto meramente confirmativo » estes actos meramente confirmativos são desprovidos de efeitos jurídicos novos e não gozam de uma definitividade material. O conceito de acto confirmativo foi elaborado com a finalidade de evitar que se reabrissem constantemente litígios, através de requerimentos sucessivos, de molde a respeitar a estabilidade e segurança jurídicas. Manifestação dessa exigência de estabilidade é o 9º/2 CPA. Mas o art. 53º CPTA apenas rejeita a impugnação de acto confirmativo nos casos indicados, sendo a regra a de que estes actos são também impugnáveis.

2.       Acto ineficaz » o art. 54º CPTA permite a impugnação de actos ainda não eficazes em duas hipóteses: quando tenha havido início de execução + quando seja muito provável que o acto vá produzir efeitos.

3.       Acto de indeferimento expresso » quando se trate de actos de pura recusa é preferível a via da condenação à prática do acto legalmente devido. Daí que o art. 51º/4 convide o autor a substituir o pedido quando se trate de anulação. Os arts. 51º/4 e 66º/2 mostram que quando o acto devido foi objecto de uma recusa expressa, o tribunal pronuncia-se no sentido de impor a substituição pelo acto devido. Pelo contrário, não restam dúvidas de que são impugnáveis os actos de indeferimento tácito ou parcial, os actos que têm um conteúdo ambivalente (o acto introduziu uma modificação a favor de terceiro, em detrimento das pretensões do interessado), em que o indeferimento é um efeito indirecto dos mesmos e os actos concludentes.

Atenção: O 51º/1 dá a entender que o critério mais amplo é o da eficácia externa, sendo o carácter lesivo de direitos uma mera especificação. Mas do que se trata são de dois critérios autónomos. Aliás, prevê-se a impugnação de actos desprovidos de eficácia externa, desde que lesivos (54º).

Ana Catarina Correia
Subturma 8
nº 17117

BIBLIOGRAFIA:
- Viera de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 2007, pp. 203 e ss.
- Freitas Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, pp. 67 e ss.
- Vasco Pereira da Silva, Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, pp. 318 e ss.
- Sérvulo Correia, "Impugnação de actos administrativos", in Justiça Administrativa, nº 16, Julho/Agosto 1999.

terça-feira, 12 de abril de 2011

"Julgar a Administração, é ainda Administrar"

  A fase da figura do julgador administrador decorre na época da Revolução Francesa, 1789, onde pela máxima da Revolução (separação de poderes) se cometeram atrocidades relativas ao contencioso administrativo e ao direito de administrar em si mesmo. Face a separação de poderes que advêm da revolução e das ideias liberalistas, os tribunais judiciais estavam proibidos de julgar qualquer caso em que envolvesse a administração, logo havia uma total liberdade administrativa para praticar todos os actos pois nunca haveria uma responsabilização dos mesmos por não haver uma figura judicial que os apreciasse.

A função da Administração esta voltada para o povo, para a ideia de promover o bem-estar social e de controlar todas as suas actividades para haver um estado mais justo para todos, a função judicial esta voltada também para o povo mas numa perspectiva de que os tribunais são os meios a quem recorrer quando se sentem injustiçados. Assim ter um “juiz” que vai julgar as suas próprias acções não é a melhor ideia do ponto de vista de que a única reacção do povo era por um processo à pessoa que exercia as funções executivas

Entre 1789 e 1872 podemos dizer que a fase do administrador-julgador teve dois períodos marcantes, mas ainda assim não se fugiu da ideia da separação rígida dos poderes. Entre 1789 e 1799 temos a fase original, a ideia de que a própria administração é que julga os litígios dos actos cometidos por eles mesmos, estamos perante uma altura em que nenhum poder judicial podia julgar o poder administrativo, então a solução dada foi ser dentro do próprio órgão administrativo haver um julgamento dos actos dos actos cometidos por eles. Esta solução não foi a melhor, aliás é óbvio nos dias de hoje que nunca se dá o poder de julgar ao mesmo órgão a quem se dá o poder de administrar, assim em 1799 surge um período da justiça reservada, onde foi criado um Conselho de Estado que era um órgão consultivo e que emitia pareceres não vinculativos. Ainda que não tenha havido uma separação da função de administrar e julgar, com a criação deste órgão começa a existir uma entidade independente, embora que emitia apenas pareceres não vinculativos, a ideia de haver uma entidade que existia apenas para ajudar no processo de julgamento e que não era um órgão administrativo veio mais tarde a tornar-se importante. Por haver esta ideia de ser o poder executivo a julgar os seus próprios actos é que se diz que nesta época “julgar a administração, é ainda administrar”.

domingo, 10 de abril de 2011

Uma História de Canibalismo: Pode o Direito Administrativo consumir o Direito Constitucional?


Saturno Devorando o Seu Filho - Rubens 
O líquen é um ser vivo que se pode facilmente encontrar na natureza. Abrangendo este ser uma variada gama de cores e feitios, é sem dificuldade que o identificamos nas telhas, nas quais a sua cor amarela e forma circular se evidenciam. O líquen resulta da simbiose agressiva entre um fungo e uma alga, os quais apenas em conjunto conseguem sobreviver a um ambiente que lhes é hostil. Da mesma forma que o líquen é uma relação entre organismos diferentes, também a Norma Constitucional e a Norma Administrativa se relacionam intimamente proporcionando uma a sobrevivência da outra.

No entanto, esta ideia de dependência reciproca pode ser encarada como redutora. Otto Mayer afirma que o “Direito Administrativo fica e o Direito Constitucional passa”, frase que exemplifica a imutabilidade (poder-se-á até dizer, em certa medida, neofobia!) da Administração, que se reflecte na dificuldade de o Estado em evoluir e corrigir comportamentos, e na dificuldade da Administração em se adaptar a novos imperativos Constitucionais. É também redutor afirmar que o Direito Administrativo advém do Direito Constitucional por mera incorporação da lógica orgânica postulada por Hans Kelsen, ideia esta que a ser seguida com tanta simplicidade, nada mais manifestaria do que a convicção doutrinária de que o Direito Administrativo apenas é Direito Constitucional concretizado. Relevantes para a compreensão desta questão, são as opiniões antagónicas de Vedel e Eisenman. Vedel afirma que a função administrativa não pode ser um fim em si mesmo, devendo ter por base a Constituição e respectiva matriz em que se insere. Discordando de Vedel, Eisenman defende que estamos apenas perante a expressão real da pirâmide invertida Kelseniana, encabeçada pela Norma Constitucional. Posteriormente, como Vedel bem exemplifica, a própria expressão “bases” utilizada na lei, ajuda a reconduzir os fundamentos da realidade administrativa na Constituição. Bem se vê então que a Administração se encontra enquadrada pelo Principio da Legalidade, sendo a lei que a configura, a mais solene de todas, a Constitucional.

Aqui chegados, é ponto assente de que o Direito Administrativo é Direito Constitucional concretizado (não só pelas razões formalistas de Eisenman!). Cabe então à Administração actuar com o objectivo de por em prática a própria Constituição, de a executar de forma continuada, permanente e substancial, na tentativa de que a materialidade da norma se efective. Com esta realidade em vista tem-se entendido que o Direito Constitucional e o Direito Administrativo se confundem num só ramo de Direito – afirmação por certo arriscada, mas que se pensa ser a correcta -, numa só linha de actuação continua, estável, tendente à prossecução dos fins de política estatal presente na Lei Fundamental.

E porquê esta afirmação? É sem dúvida alguma o Contencioso Administrativo o espaço por excelência onde se dirimem questões que se prendem com a aplicação desde logo dos Direitos Fundamentais, Direitos estes que sendo o alicerce, posteriormente se subdividem em preceitos por eles impregnados que fazem a ponte entre o Administrado e a Administração, através de regras substantivas que visam proteger e assegurar a tutela plena e efectiva do Cidadão. Com o objectivo de tornar esta orientação algo palpável, Häberele bate-se pela criação e aceitação de um estatuto que permita ao Cidadão, que orbita na responsabilidade prestadora do Estado, actuar contra este, sempre que os seus Direitos Fundamentais perigarem (o status activus processualis, a integrar no mais vasto e meramente jurídico-material status activus). Com este estatuto, o qual possibilita a operatividade da Norma Fundamental, independente da sua origem ou vocação, dota-se o Administrado de uma das mais poderosas armas contra a arbitrariedade do Colosso estatal.

Estando então perante a Santíssima Trindade (Direito Constitucional, Direito Administrativo e Contencioso Administrativo), deslindamos dois novos (e talvez os mais poderosos) actores na realização dos Direitos Fundamentais, a Administração e os Tribunais, que juntamente com o tradicional actor – o Legislador – visam a materialização desses mesmos direitos na esfera do Cidadão.

Respondendo então ao título deste post, podemos concluir que o Direito Administrativo se apoderou do Direito Constitucional de forma a torna-lo efectivo e realizável, caso contrário, seria um mero postulado formal, férreo e inflexível, não podendo nunca chegar ao Privado. Quando tal vocação da Administração não acontece, cabe então ao Tribunal actuar no interesse do Cidadão, cumprido a Constituição. Assim dito, da mesma forma que se deve interpretar a norma Administrativa no sentido da Constituição, deve-se interpretar a Norma Constitucional conforme aos Principios de Direito Administrativo.

Carlos Miguel Vaz Serra
nº15811
Subturma 8

terça-feira, 29 de março de 2011

“Admitir que o tribunal condena a administração seria claramente uma violação do princípio da separação de poderes.”

O presente comentário não começará com uma síntese ideológica sobre o princípio da separação de poderes que poderia começar com Aristóteles (“Politica”), passar por John Lock (“ two treatises of governmente”) e por Montesquieu, entre muitos outros. Também não nos debruçaremos sobre a sua evolução histórica no direito português. No comentário desta frase pretendemos tão só fazer umas breves reflexões à luz do actual Direito. 
            Desde logo nos surge o problema de saber o que se entende por separação de poderes.
Vendo o Estado em si mesmo como um poder único, o princípio da separação de poderes deve impor a esse mesmo Estado o respeito pelos direitos fundamentais dos seus cidadãos. E é ao Estado que cabe assegurar essa liberdade. De acordo com o artigo 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, “ qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição. Ultrapassando o ideário liberal em que se vislumbrava uma separação de poderes rígida (e aqui já estaremos a pecar por introduzir elementos históricos), esta deve ser vista de uma forma mais harmónica, assegurando uma vivencia mais equilibrada entre os vários poderes (a saber: legislativo, administrativo e jurisdicional).
            Seguindo Gomes Canotilho diremos que é confiado a cada órgão soberano uma função materialmente distinta, sendo que, não pode a nenhum desses órgãos, sob pena de violação do principio da separação de poderes, ser atribuída função que implique esvaziamento do núcleo essencial material do outro.
            Interessa-nos agora distinguir as duas funções que aqui estão em causa: função administrativa e função jurisdicional. Para Jorge Miranda, enquanto a primeira prossegue o interesse público correspondente às necessidades colectivas prescritas em lei, a segunda define o direito em concreto.
            No confronto entre ambas as funções, cujo princípio lhes é aplicável (art. 3º e 71º CPTA), a função jurisdicional deve ser expressão da legalidade democrática, deve a essa luz resolver os problemas entre interesse público e privado e tem a importante função de defender os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. No fundo os tribunais podem “imiscuir-se” na função administrativa quando esteja em causa a legalidade democrática, sem que isso viole o princípio da separação de poderes.
            Mas então e o “espaço de liberdade de actuação administrativa conferida por lei e limitada pelo bloco de legalidade” (definição de margem de livre decisão segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos)? De facto os tribunais não podem fiscalizar o mérito da acção administrativa: a isto se chama reserva de administração (art. 71º/2 CPTA). Contudo a margem de livre decisão não é imune a “agressões” da função jurisdicional. Isto porque também esta sujeita a limitações. Primeiramente surgem a limitações legais a que está sujeita a administração. Outro limite é a redução a zero da margem de livre apreciação, que apenas faz surgir uma decisão juridicamente admissível., por fim temos os limites imanentes, estando aqui a força jurídica dos princípios de actuação administrativa (art. 266º CRP e art. 71º CPTA).
            Concluímos no sentido de que os tribunais são competentes para garantir a legalidade das decisões administrativas. Não podem, contudo, violar a reserva de administração, fazendo o seu papel. Mas a separação não é absoluta e a própria margem de livre apreciação está também ela sujeita a limites.

Pedro Nascimento  nº17817

segunda-feira, 28 de março de 2011

Os Limites à Plena Jurisdição dos Tribunais Administrativos

A Reforma Administrativa de 2004 altera substancialmente o modelo legal num sentido subjectivista, embora com alguns resquícios de um modelo objectivista.

O modelo objectivista, ou de tipo francês, consiste num contencioso com uma função virada para a defesa da legalidade e do interesse público, pelo que os tribunais limitam-se apenas a declarar a invalidade dos actos praticados – Contencioso de Mera Anulação. Esta visão limitada da actuação jurisdicional deve-se a uma interpretação muito restritiva do Princípio da Separação de Poderes, onde se considerava que “Julgar a Administração é ainda administrar”, pelo que o tribunal não poderia condenar a administração a praticar determinado acto com certo conteúdo pois estaria a usurpar o seu poder. Uma sentença de condenação à prática de certo acto não só era vista como uma usurpação de poderes, mas também como uma perversão da hierarquia administrativa, pois seria um órgão administrativo (Tribunal Administrativo) a dar ordens, através da sentença, ao seu superior hierárquico, o Ministro.

O modelo subjectivista, ou de tipo alemão, consagra o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, em que os tribunais têm amplos poderes decisórios sobre a Administração. Este modelo altera substancialmente a visão pervertida do princípio da separação de poderes, interpretando este princípio como um princípio de equilíbrio, que não exclui a colaboração e interdependência entre os poderes, mas sim promove-a, garantindo uma melhor fiscalização dos poderes.

A evolução do modelo objectivista para o subjectivista veio consagrar então a plena jurisdição dos tribunais administrativos, plasmado no art.º2/1 do CPTA. O artigo chega mesmo a elencar os diversos conteúdos das pretensões possíveis para marcar a diferença em relação ao regime anterior onde só eram permitidas sentenças de anulação.

Apesar de se falar em tutela jurisdicional efectiva, o que parece abranger todo e qualquer tipo de resolução de controvérsias emergentes da relações jurídicas administrativas, esta tutela apenas abrange “questões de direito”. A função jurisdicional administrativa está então funcionalmente limitada aos litígios que levantem questões jurídicas. CASTANHEIRA NEVES caracteriza a função jurisdicional como a procura dos “fundamentos” do “valor”, do “justo”; enquanto que a função administrativa procura a melhor solução, o melhor efeito ou sentido útil, são as chamadas questões de mérito.

A actividade jurisdicional dos Tribunais Administrativos está condicionada pelas limitações funcionais decorrentes do seu exercício, que envolve um juízo sobre a legitimidade de exercício de um outro poder público – Poder Executivo. O Princípio da Separação de Poderes implica, naturalmente, algumas limitações ao poder jurisdicional, de modo a evitar que este se substitua à Administração, e era exactamente por isso que, tradicionalmente, se afirmava que a jurisdição administrativa era, por natureza, uma jurisdição limitada.

Resta saber se, face ao novo regime de plena jurisdição da justiça administrativa, é ainda possível ver alguma fragilidade dos tribunais perante o poder administrativo, sendo essa a questão central que pretendo tratar.

A eficácia da protecção jurisdicional administrativa está limitada pela distinção funcional entre decidir e fiscalizar, pois enquanto esta última consiste apenas em controlar uma competência alheia, a primeira implica uma valoração mais ou menos livre, consoante a indeterminação conceitual da norma a aplicar.

A função de decidir implica um maior conhecimento da situação em causa, uma ponderação entre as alternativas e a escolha da melhor opção, da opção que melhor atinja o sentido útil da norma. A função de fiscalizar, feita por um 2º interprete, implica a análise da situação em abstracto, submetendo a decisão a testes de jurisdicidade, podendo condenar a Administração à prática de novo acto apenas quando o primeiro incumpra princípios reguladores da decisão, e mesmo neste caso, pode apenas aconselhar e indicar as opções que respeitem os princípios jurídicos, cabendo a escolha da melhor opção à Administração, sendo a única excepção as situações em que haja apenas uma escolha que respeite os princípios.

Esta limitação da sentença, na abstenção por parte do Juiz em decidir qual o conteúdo do acto a praticar, é outro limite funcional – o autocontrolo do juiz perante a reserva de discricionaridade na Administração.

O Tribunal Administrativo está então limitado apenas a fiscalizar o cumprimento de normas e princípios jurídicos vinculativos da Administração e não a conveniência ou oportunidade do acto, como consagra o art.º3 do CPTA.
Antigamente também existiam limites funcionais da justiça administrativa e dos poderes de decisão do juiz, pois este só podia anular o acto, não podendo, como agora, exercer plenamente o seu poder de jurisdição através de condenações ou injunções contra a Administração. Estes limites funcionais – mera anulação do acto – foram totalmente ultrapassados com a Reforma de 2004. 

A Reforma de 2004 eliminou os limites ao poder de jurisdição administrativo, através do princípio da tutela jurisdicional efectiva, no entanto, ainda que o nome do princípio o pareça indicar, esta tutela não é absoluta, continua a estar limitada.

Actualmente o juiz pode decidir todos os pedidos enumerados no art.2º do CPTA e não apenas anular, mas “o que o juiz não pode é determinar aquilo que a Administração há-de fazer num caso concreto, e muito menos substituir-se a ela, quando esteja em causa o conteúdo “discricionário” de um acto de autoridade, devendo limitar-se, então, a uma condenação genérica ou directiva[1].

Em suma, o Princípio da Separação de Poderes já não implica uma proibição absoluta de impor comportamentos à Administração, mas apenas uma proibição funcional de um juiz interferir na essência do sistema de administração executiva. 

Catarina Ruivo Rosa, nº 17221


[1] VIEIRA DE ANDRADE, Justiça Administrativa, Almedina, 2007

sábado, 26 de março de 2011

Do Acto Administrativo liberal e d' A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp

 (A lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp - Rembrandt)
     1789, França. Por entre o fogo e o ferro nas mãos da turba, um velho mundo é sepultado, e um novo nasce. Parte desse novo mundo é uma organização da polis como nunca antes havia sido vista, a qual assentava na estrita separação de poderes, como Montesquieu definiu em L'Esprit des Lois, obra base dos maestros da ordem pós revolucionária francesa. A essa nova ordem chamou-se Estado Liberal.
     
     Cabe neste post, caracterizar a relação entre Acto Administrativo e Estado Liberal, e de como um e outro formam uma relação simbiótica quase inabalável.
   
     À época do Estado Liberal, deparava-mo-nos com uma Administração cuja a orientação era grandemente de oposição ao particular, contendo esta um verdadeiro cariz agressivo,não tendo qualquer vocação prestadora (figura para a qual no futuro a Administração evoluirá), mas sim a de assegurar ao particular a sua liberdade de actuação política e económica, no estrito cumprimento da já referida separação de poderes, separação esta enquadrada pelo Princípio da Legalidade, Princípio o qual consubstancia apenas o limite máximo de actuação da Administração, deixando uma larga margem de liberdade de modo a que se encontrasse capacitada para atingir o seu fim último, o de administrar a res publica, se necessário em frontal confronto com a vontade privada (a qual devia, como nos dias de hoje, ceder ao verdadeiro interesse público). Desta feita, a Administração socorre-se da figura 'Acto Administrativo', o qual tinha por magna função, exprimir a oposição da Administração face ao particular.
     
   Aqui chegados, dissequemos o Acto Administrativo desta época. O Acto Administrativo é um conceito semeado e cultivado pela jurisprudência administrativa, com o fim de delimitar a zona de acção da Administração. Com a evolução do Direito Administrativo veio a tornar-se a pedra de toque de todo um edifício jurídico-administrativo, habilmente esculpido pela doutrina, a qual o lima e configura naquilo que mais tarde conheceremos. De acordo com o Professor Freitas do Amaral, ainda em 1989, bem antes da revolucionária reforma de 2003, a principal função do Acto era a de enquadrar a actuação da Administração, de modo a proteger e salvaguardar o cidadão. Seria então o Acto uma eficaz protecção Constitucionalmente consagrada contra o eventual poder público abusivo e arbitrário.
     
   Cabe então, como vimos, à doutrina dos fins do século XIX, inícios do século XX, teorizá-lo e torná-lo o centro do funcionamento do Estado de Direito. Esta lapidação magistralmente executada corresponderá ao que hoje chamamos teoria clássica do Estado de Direito, a qual cristalizava o Acto Administrativo como o fim em si mesmo da elaboração teórica do Direito Administrativo. Assim, bem se vê, sofre o  Acto Administrativo do estigma de o quererem tornar o umbigo da ciência administrativa, sem que para tal ele se encontrasse capacitado, dada a vastidão do que é a realidade administrativa - um verdadeiro caso de complexo de superioridade, como certamente atestaria Alfred Adler!

     Das mais exemplificativas imagens do acima exposto são as construções dogmáticas protagonizadas por Hauriou e Mayer, ambas de natureza autoritária. Para Maurice Hauriou o Acto Administrativo seria amplamente entendido, tornando-se uma realidade paralela ao negócio jurídico, sendo, no entanto, o acto executorio a máxima manifestaçao do poder administrativo alicerçado no imperium do Estado. Diversamente de Hauriou, Otto Mayer aproxima o Acto Administrativo da sentença judicial, dado que ambas as realidades encerram em si um comando imperativo dirigido ao particular, o qual, independentemente da sua vontade, terá de o acatar. Assim, tanto a sentença como o acto encontram na coercibilidade estadual (ainda que não violenta) a sua legitimidade final.

     Como foi então descrito, o Acto Administrativo é um produto de uma forma de teorizar todo um ramo de Direito numa determinada época - a do Estado Liberal -, pelo que se adequa perfeitamente à necessidade sentida, que era a de ter um Direito racional, desenhado a régua e esquadro, bem revelador do fosso que separava o Leviatã estadual do pequeno cidadão privado.

     Como tudo, o próprio Estado evoluiu, neste caso em direcção ao estado social, mas no entanto, a teorização do Acto Administrativo manteve-se relativamente inalterada, como se de uma bactéria multirresistente se tratasse. O acto, de natureza agressivo sobreviveu e, prosperou até, como prova a realidade vivida em Portugal durante os anos do Estado Novo (referência seja feita a Marcello Caetano que através dos seus trabalhos corporizou no Código Administrativo de 1936-40 e nas normas reguladores do Supremo Tribunal Administrativo, os ensinamentos e doutrina de Hauriou e Mayer). Mas se no contexto de um Estado autoritário não choca tal visão musculada do Acto Administrativo, já esta mesma visão choca frontalmente com os mais singelos imperativos de lógica presentes em qualquer estudioso de Dirieto Amdinistrativo, que se vê impossibilitado de compreender qual a razão que leva Estados, com uma larga e  fundadora tradição democrática da sociedade e até antropocêntrica do Direito, a ainda hoje consagrarem esta orientação doutrinária. É, porém, essa uma discussão a qual prefiro guardar para um futuro post, dado que só por si é uma matéria de grande interesse e elevada densidade dogmática.

Carlos Miguel Vaz Serra
nº15811
Subturma 8

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Julgar a administração é ainda administrar"

A profunda alteração social, política e económica que a Revolução Francesa gerou teve resultados imediatos na ordem jurídica. Baseada numa concepção de separação de poderes, esta Revolução pode ser considerada como marco do início da história do contencioso administrativo.
A separação de poderes postula a divisão dos poderes legislativo, executivo e judicial, sendo estas funções atribuídas a diferentes órgãos. Contudo, o entendimento francês deste princípio levou a admitir que os conflitos em que a Administração era parte deveriam ser julgados pela própria Administração, de modo a evitar uma subordinação do poder executivo ao judicial. Afirmou-se, então, que “julgar a administração é ainda administrar”.
Este era o modelo do administrador-juiz, em que a decisão final dos litígios administrativos cabia aos órgãos superiores da Administração. Era o modelo do Estado liberal em que a Administração era considerada agressiva pois intervinha pouco e contra o particular.
Neste modelo organizativo do contencioso, havia uma confusão ou concentração de dois poderes num decisor que julgava e administrava. É de realçar que este entendimento surge numa fase de revolução em que os tribunais desempenharam um importante papel na luta contra o poder do rei, levando os revolucionários, agora no poder, a temer essa força dos tribunais. Foi no intuito de garantir que os tribunais não interferiam no poder administrativo que lhes foi retirado o poder de julgar a Administração.
Pode dizer-se que este modelo de administrador-juiz durou entre 1789 e 1799.
Em 1799 foi criado o Conselho de Estado. Tratava-se de um órgão administrativo que emitia pareceres sujeitos a homologação do chefe de Estado. Esta fase durou até 1872 e foi denominada de justiça reservada.
A partir desta data a justiça deixou de ser reservada e passou a ser delegada. Diz-se delegada pois o Conselho de Estado, que continua a ser um órgão administrativo, actua agora com base numa delegação de poderes. No entanto, manteve-se a ideia de que julgar a administração é ainda administrar.
Com a evolução para o Estado Social perde-se o entendimento de que a Administração é puramente executiva, atribuindo-lhe como principal característica o poder discricionário. A lei é agora o limite e o fundamento da actuação administrativa pelo que os tribunais podem controlar a legalidade mas não o mérito das decisões da administração.
Embora em França continue a haver um modelo de justiça delegada, actualmente já não vigora o modelo de administrador-juiz, vigora sim um modelo judicialista que se caracteriza por atribuir aos tribunais, integrados numa ordem judicial, a decisão dos litígios administrativos. O princípio agora já não é o de que “julgar a administração é ainda administrar” mas sim o de que “julgar a administração é verdadeiramente julgar”. Entende-se que a actuação da Administração está subordinada à lei e que os tribunais são competentes para conhecer os litígios emergentes de relações administrativas.
Conclui-se pelo acima exposto que o entendimento de que “julgar a administração é ainda administrar” fez sentido no pós Revolução Francesa mas com a evolução da história do contencioso administrativo tornou-se clara a sua jurisdicionalização e a separação entre julgar e administrar.

Ana Rita Peres n.º 16109