quarta-feira, 4 de maio de 2011

O alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa

Comecemos por interpretar o artigo 212º número 3 da Constituição da República Portuguesa, onde se diz que “compete aos tribunais administrativos (e fiscais) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”, para saber se aí se consagra uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por um lado, os tribunais administrativos, só poderão julgar questões de direito administrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar tais questões.
As tendências doutrinárias desenvolveram-se, admitindo-se generalizadamente a atribuição legal aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à actividade da Administração, ainda que respeitassem a relações ou incluíssem aspectos de direito privado. Essa possibilidade tornava-se tanto mais aceitável quanto se verificava uma crescente utilização de mecanismos de direito privado pela Administração no exercício da função administrativa, muitas vezes através de entidades privadas “de mão pública”, tendo em conta a miscigenização prática do direito público com o direito privado e a necessidade de assegurar o respeito pelos princípios públicos em toda a actuação administrativa.
Tal como se defendeu mesmo, a atribuição de competências aos tribunais administrativos para conhecer litígios decorrentes da actividade no âmbito de outras funções estaduais – por exemplo, acções sobre responsabilidade civil do Estado por actos da função política, legislativa ou jurisdicional.
Para alguns, resulta da Constituição uma reserva, perante a qual o legislador não pode atribuir a outros tribunais, designadamente aos tribunais judiciais, o julgamento de litígios materialmente administrativos, só sendo legítimas, nesta matéria, as devoluções de competências em matéria administrativa para outros tribunais que forem previstas ao nível constitucional.
Há, no entanto, quem defenda também uma posição mitigada, admitindo a remissão do legislador para a “jurisdição comum” de questões emergentes de relações jurídicas administrativas, designadamente quando estejam em causa direitos fundamentais dos cidadãos, pretendendo assim assegurar uma protecção processual mais intensa desses direitos, tendo em consideração sobretudo as dificuldades da jurisdição administrativa, por falta de meios e insuficiência do número de tribunais para corresponder às necessidades de uma tutela judicial efectiva.
A posição mais razoável, entretanto sufragada pelo STA (ex: Acórdão de 14 de Junho de 2000); pelo Tribunal de Conflitos (ex: Acórdão de 12 de Maio de 1994) e pelo Tribunal Constitucional (ex: Acórdão número 746/96 de 29 de Maio), parece ser a que não lê o referido preceito constitucional como um imperativo estrito, contendo uma proibição absoluta.
Assim, é normal que se formule um preceito que contenha a definição da área própria da “nova” ordem jurídica administrativa e fiscal no contexto da organização dos tribunais, adoptando o sistema da “cláusula geral”, sem com isso pretender necessariamente estabelecer uma reserva material absoluta. Essa definição do âmbito-regra, que corresponde à justiça administrativa em sentido material, deve ser entendida como uma garantia constitucional, da qual deriva para o legislador ordinário tão-somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições.
Assim fica proibida a descaracterização da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria, mas não fica proibida a atribuição pontual a outros tribunais do julgamento de questões substancialmente administrativas, admitindo-se a razoabilidade dessas “remissões” orgânico-processuais, muitas delas tradicionais, que podem ter justificações diversas.
Por fim, uma interpretação tão rigorosa implicaria a inconstitucionalização ou, pelo menos, suscitaria dúvidas e questões sobre a constitucionalidade de leis importantes e de práticas de longa tradição, designadamente em matéria de polícia judiciária, de expropriações por utilidade pública, bem como uma alteração profunda da organização judiciária administrativa, para tornar o acesso praticável e a protecção judicial dos cidadãos efectiva.
Em resumo, a interpretação mais razoável do preceito constitucional parece ser a de que visa apenas consagrar os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa, embora seja necessário dizer que ainda que se optasse pela existência de uma reserva material absoluta da jurisdição administrativa, o critério orgânico de delimitação da justiça administrativa não perderia sentido, na medida em que a própria Constituição atribui a outros tribunais o julgamento de questões emergentes de relações jurídicas administrativas.

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