domingo, 22 de maio de 2011

O Contencioso Subjectivista e as Posições dos Particulares


           No contencioso objectivista a legitimidade do particular não é determinada pela posição material deste na relação administrativa, mas pelo maior ou menor grau de abertura política do sistema em causa. A legitimidade é que determina a maior ou menor garantia para os particulares.
            Atentando no conteúdo da noção de interesse “directo, pessoal e legítimo”, verifica-se que ela apontava para uma relação jurídico-material e não meramente processual. No dizer de MARCELLO CAETANO deveria existir «uma relação de titularidade entre a pessoa (singular ou colectiva) do recorrente e a pretensão por cuja vitória se pugna ou o prejuízo causado pelo acto cuja anulação se requer». Os requisitos de interesse “pessoal” e “legítimo” são tautológicos se se atender a que o particular é titular de um direito que é feito valer através do processo.
            A revisão constitucional de 97 colocou os meios processuais a girar em torno do princípio da tutela efectiva dos direitos dos particulares (art. 268º/4 CRP ) e os actuais arts. 9º e 55º do CPTA adoptam uma definição ampla de direito subjectivo público (à luz da doutrina da norma de protecção). Por outro lado, ainda adoptando a tripartição entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos, a alegação da qualidade de parte englobaria todas as realidades.
           Na perspectiva clássica o particular era um «objecto do poder soberano» (ERICHSEN-MARTENS) e não era considerado parte no processo. Hoje em dia, Administração e particular estão em total posição de igualdade (art. 6º CPTA).
           
            A posição do particular no processo prende-se com a concepção que se tenha da sua posição face à relação material controvertida e face ao poder público.

            O Prof. Vasco Pereira da Silva considera existir seis principais concepções acerca das posições de vantagem dos particulares face à administração:

            1- Uma situação de interesse de facto, que confere aos indivíduos legitimidade processual por terem um interesse próximo ao da administração, não defendendo os particulares nenhuma posição subjectiva face à administração ( LAFERRIÈRE, HAURIOU, GUICCIARDI, MACHETE).

            2- Um direito à legalidade que é feito valer no processo ( BONNARD, BARTHÉLÈMY, MARCELLO CAETANO, WALTER JELLINEK).

            3- Duas situações distintas: direitos subjectivos e interesses legítimos, consoante o poder resulte imediata e intencionalmente das normas ou seja atribuído, apenas, de forma reflexa e mediata ( ZANOBINI, SANDULLI, FREITAS DO AMARAL).

            4- Novamente duas situações distintas: direitos e interesses mas que se distinguem consoante se trate (ou não) de uma situação dependente do exercício do poder administrativo (NIGRO, RUI MACHETE).

            5- Direitos subjectivos clássicos ou activos e direitos subjectivos novos ou reactivos (KORNPROBST, LALIGANT,ROUBIER, ENTERRÌA).

6- Uma única categoria : a dos direitos subjectivos (BACHOF, MAURER, KREBBS, TSCHIRA/ GLAESER, BADURA).

            A primeira concepção, objectivista, nasceu com o contencioso de tipo francês. O particular não era uma parte em sentido material e o interesse próximo ao da administração, que se exigia para que o particular tivesse legitimidade, era um mero requisito de seriedade do recurso, limitando-o assim aos particulares que, no plano dos factos, pudessem retirar algum benefício com a anulação do acto administrativo, não estendendo essa legitimidade a todos os particulares por razões de impraticabilidade ( LAFERRIÈRE E HAURIOU). Apenas a Administração seria parte em sentido material e formal. O particular recorreria para protecção do interesse público e apenas veria a sua pretensão pessoal satisfeita no plano dos factos no caso da eventual coincidência com esse interesse público (GUICCIARDI).
            A segunda concepção (escola subjectivista francesa) não nega um direito subjectivo ao particular mas parte de uma noção de direito subjectivo avoluntarista (na linha de KELSEN e DUGUIT). O particular poderia exigir uma conduta à Administração porque esta se encontraria submetida ao direito objectivo (BONNARD), sendo que esse direito à legalidade se poderia repartir em vários direitos subjectivos diferentes (BARTHÉLÈMY).Certas situações de vantagem dos particulares seriam atribuídas pela lei apenas enquanto a lei quisesse atribuí-las, (direitos reflexos) não existindo na esfera do particular de per si (JELLINEK).
             A terceira distinção é característica do direito italiano. A distinção entre direito subjectivo e interesse legítimo passa pelo reconhecimento que o ordenamento jurídico faz do direito enquanto interesse exclusivamente próprio do seu titular, ao passo que o interesse legítimo seria uma posição reconhecida pelo ordenamento jurídico em virtude da própria tutela exercida por este último. Para ZANOBINI seriam duas modalidades distintas de direitos subjectivos.
             Também para SANDULLI ambas as modalidades constituem categorias de direito substantivo uma vez que as normas que tutelam direitos e interesses pressupõem igualmente a existência de posições subjectivas, estando a diferença entre as duas modalidades na tutela directa e imediata que existe quanto aos direitos subjectivos.
             Já para FREITAS DO AMARAL a distinção entre as duas figuras estaria em que, enquanto os direitos subjectivos se baseiam na satisfação de um interesse próprio, o interesse legítimo apenas fundaria uma faculdade de exigir à Administração respeito pela legalidade.
             A quarta distinção é uma variante da anterior e distingue as duas figuras consoante o bem jurídico garantido se encontre (ou não) dependente do exercício do poder administrativo. A diferença entre as duas situações estaria não no carácter imediato ou mediato da tutela, mas na circunstância da norma, no caso do interesse legítimo, tutelar simultaneamente interesses públicos e particulares, actuando essa protecção através do exercício do poder e ocorrendo imediata e plenamente quanto ao interesse público e mediata e eventualmente quanto ao particular (NIGRO). A tutela do direito subjectivo ocorreria através da atribuição de poderes a um particular, (incluindo o direito de acção) ao passo que a tutela dos interesses legítimos ocorreria mediante a atribuição de prorrogativas que, influindo no exercício legal do poder, satisfizessem o interesse do particular (MACHETE).
            Para a quinta concepção o direito reactivo nasceria do sucesso da pretensão do autor. Para KORNPROBST este direito eventual seria constituído por um elemento material (interesse juridicamente protegido ) e um voluntário (que se manifestaria na interposição do recurso). Já para LALIGANT o interesse serviria para suprir a função do direito no contencioso administrativo, sendo um direito potencial/eventual, conferindo qualidade para agir.
            Por fim, para ENTERRÍA, o particular exerce um direito subjectivo que consiste em fazer actuar a norma objectiva no seu próprio interesse. Antes da violação não existiria direito subjectivo, surgindo este (na forma de acção de impugnação) através da conjugação dos elementos “prejuízo” e “ilegalidade”.
            O direito subjectivo típico (activo) consiste numa pretensão que o particular faz actuar contra a Administração independentemente dum comportamento desta.
            Já em relação à última posição, ela corresponde à doutrina alemã da unificação das posições jurídicas substantivas na categoria de direitos subjectivos, por via da teoria da norma de protecção. De acordo com esta teoria existiriam duas formas de atribuir direitos: através de normas de autorização ou de normas impositivas. A dificuldade, no direito público, estaria em saber quando é que essas normas impositivas criariam direitos, uma vez que no direito público o dever jurídico não corresponde em regra a uma pretensão de um sujeito determinado (BACHOF).
            Para a teoria da norma de protecção são necessários três requisitos para que exista um direito subjectivo: que se trate de um poder vinculado e não discricionário, que a norma exista para protecção de interesses individuais e não apenas do interesse público e que a sua atribuição tenha como consequência a possibilidade dos particulares recorrerem por causa dela.
            Duas outras tendências procuram estender o âmbito da norma de protecção também aos interesses de facto, sobretudo no domínio de aplicação de direitos fundamentais:
             A primeira defende que a existência de um direito subjectivo deve ser também afirmada no caso dos meros interesses de facto, quando esteja em causa a aplicação de direitos fundamentais (TSCHIRA/GLAESER). Isto porque os direitos fundamentais obrigam o Estado à omissão de medidas ilegais (KREBBS).
            A segunda pretende alargar a noção de direito subjectivo fazendo uso da noção de direito reactivo (RUPP,HENKE).
           
            O Prof. Vasco Pereira da Silva rejeita as duas primeiras teses uma vez que o particular não deve ser visto como um mero auxiliar da legalidade no processo, devendo sim existir uma noção substantiva quanto à posição do particular. Por outro lado, em relação à tese de que o particular teria um direito à legalidade, o Prof. salienta que parte de uma noção objectivada de direito subjectivo, o que leva à existência de um direito sem sujeito que não é próprio de titulares determinados mas de todos aqueles que mostrem ter interesse no processo. Ambas estas soluções seriam contrárias à CRP ( art. 268º/4).
           Quanto à terceira concepção, o Prof. salienta que surgiu na lógica do contencioso italiano e da distinção por este traçada para distinguir o contencioso administrativo do contencioso ordinário. Tal distinção, já estando muito posta em causa, desembocou no casuísmo do critério do operador jurídico quanto à questão de saber se a norma estabelece uma protecção imediata ou mediata. A distinção assenta numa contradição: o interesse legítimo não pode ser uma posição substantiva do particular e resultar de uma norma que apenas se ocupa do interesse público. Se assim fosse, a distinção entre interesses legítimos e interesses de facto deixaria de existir. De resto a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos foi posta em causa mesmo no próprio sistema italiano e abandonada em 2000 com a pretensão de alargar o âmbito da jurisdição administrativa, o que aliás já vinha acontecendo.
           Quanto à quarta posição, o Prof. rejeita-a igualmente uma vez que atendendo à Administração prestadora não faria sentido dizer que não existe um direito do particular por estar dependente do exercício de um poder administrativo, sob pena de ter que deixar de se considerar como direitos subjectivos as prestações sociais da Administração, os direitos dos funcionários etc. Essa distinção poderia quando muito fazer sentido num sistema de Administração agressiva, em que o exercício dos direitos dos particulares não dependesse da actuação da Administração. Por outro lado, o Prof. refere que a distinção entre direitos e interesses legítimos não se deve fundar na imediatez ou mediatez da tutela, mas com o quid da protecção - o bem jurídico protegido.
          Quanto à quinta posição, o Prof. considera que faz uma confusão entre o direito ao recurso (que é um direito autónomo) e o interesse material do indivíduo no processo. A sentença não cria o direito subjectivo, antes o reconhece.
          O Prof. considera a sexta posição como a mais adequada. Assim, deve entender-se que existe um direito subjectivo sempre que da norma, que não tutele exclusivamente o interesse público, resulte uma situação de vantagem intencional ou de facto (neste último caso, quando se trate de direitos fundamentais). Quanto a saber se a par do interesse público a norma tutela interesses particulares deve entender-se que num moderno Estado de Direito todas as vantagens concedidas pela norma aos particulares devem considerar-se como direitos fundamentais. Este entendimento é imposto pela CRP- art. 266º/1.
           As normas que conferem direitos fundamentais conferem necessariamente direitos subjectivos a cada cidadão individualizado. Sob este critério se devem analisar também as situações de interesses difusos: se a norma preenche as condições para atribuir um direito subjectivo ou decorre de um direito fundamental, então deverá haver possibilidade de recorrer contenciosamente.
          Como salienta o Prof., as normas infra constitucionais devem ser valoradas face à CRP, por forma a descobrir se tutelam ou não interesses individuais. A diferença entre os direitos subjectivos e os interesses legítimos não reside numa diferença de género mas de grau de protecção dos particulares, não deixando de existir um direito num caso e no outro. O facto de o interesse último do particular não estar assegurado apenas pelo facto de a Administração estar adstrita a cumprir os seus deveres procedimentais não retira o interesse ao particular no cumprimento pela Administração desses procedimentos, nem retira a esse interesse o carácter de direito. Olhando ao art. 266º/1 da CRP constata-se que não contrapõe os direitos subjectivos aos interesses legítimos, falando antes em “interesses legalmente protegidos” e tratando ambos como posições jurídico-materiais dos indivíduos, como direitos subjectivos.
          Em conclusão, deve entender-se que a CRP impõe uma visão subjectivista do contencioso administrativo, fundado este num direito subjectivo do particular, cuja legitimidade deve ser aferida em função da relação controvertida, garantindo-se assim a plena tutela dos particulares.

Bibliografia: Vasco Pereira da Silva- “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”,
Vasco Pereira da Silva- “Para um Contencioso Administrativo dos Particulares” (esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de anulação)

Joana Antunes, nº 17351

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